segunda-feira, 25 de setembro de 2017

O Dia pós-Corinthians


25 de setembro de 2017, após um São Paulo 1 x 1 Corinthians

Tão certa quanto a Quarta-feira de Cinzas fechando o Carnaval, é a Segunda-feira pós-Corinthians.
É tempestade em terreno arrasado.
Não tem acordo.
É reclamação de tudo quanto é tipo. Daquelas de ressuscitar defunto.
E todos estão certos.
Isso é evidente, não há torcedor errado, há apenas os que descordam.
Mas esses são rapidamente ignorados.
Tudo isso, devido a uma especificidade no futebol. Do lado de fora das linhas do campo, todo mundo tem opinião, e esse é o problema.
O problema do treinador e do árbitro.
Todos estão de olho em um culpado.
Quando o treinador tem moral, só um lado sofre.
Na resenha do trabalho ainda pela manhã, nas redes sociais e no boteco. Não dá outra, "foi o meu treinador que mexeu errado", "o árbitro que na dúvida sempre dá pró-Corinthians".
É uma avalanche de pênaltis não marcados. Até mesmo na área adversária.
O pobre homem do apito é sempre apontado como mal intencionado.
Se apertar a mão de jogador corintiano após o jogo, é manchete de meia hora em programa esportivo.
Alguns pedem CPI.
Em replay de gols alvinegros é mais procurado do que a bola.
Todos querem saber onde o homem de preto está.
Na boca de torcedor magoado, só há hipóteses.
O "se" vira verbo.
 Aliás, não há na Língua Portuguesa palavra de maior envergadura.
- SE  o juiz tivesse marcado a falta...
- SE esse juiz não fosse comprado...
- SE tivéssemos jogado com o uniforme principal...
- SE tivesse jogado fulano...
- SE... SE... SE...
Todos tentam criar suas teorias da conspiração.
Não há resultado honesto.
Em situações extremas, elegem os possíveis redentores.
- O Campeonato está comprado,mas se continuar assim o Palmeiras pode chegar. Eu sou sãopaulino. Mas o Palmeiras é o único que tem elenco para passar o Corinthians.
Sempre surge um que diz, "O juiz não deixa".
E assim segue a resenha.
Nesta segunda teve anti pedindo falta em drible.
Alguns pediam a suspensão de um dos gandulas que devolveu a bola rápido demais.
No lance de gol corintiano, amontoaram-se entorno da televisão procurando um lance que tenha originado por favorecimento.
Por horas a fio. Conferem a tabela.
Fazem cálculos. Juntos.
Um misto de esperança e desespero.
Todos, flamenguistas, palmeirenses, sãopaulinos, ateus, cristãos e muçulmanos.
É nesse momento que percebemos que no mundo só há duas torcidas.
A corintiana e os anti.
Estava chato sair de casa.
No ônibus.
Na escola.
Em todos os lugares.
É uma devoção que nem o próprio corintiano tem.



domingo, 20 de agosto de 2017

Cutucada no oco


Famosa dedada em Cavani em jogo Chile e Uruguai em 2015 pela Copa América.

A área é uma festa. Um pega-pega sem controle.
É jogador que corre de camisa grudada. De  mãozinha dada.
Um abraça-abraça.
Tem o sombra que se mistura em meio as paredes de marcação e procura espaço. Nestes metros quadrados habita o folclórico gato. O tipo de jogador chato, que se esfrega. Vive deitando nos braços dos zagueiros. Com beque brucutu até desfalece. Se esfrega. Roça. Seu corpo inteiro entrega as intenções.
 Quando apertado, grita e se joga.
Deste tipo,ninguém gosta. Marcador que se presa aceita cotovelada na corrida. Empurrão no salto e até cama de gato, mas roçada não. Isso é ofensivo.
Na área todo mundo corre juntinho. Parece até nado sincronizado. Pula daqui. Que pulo dali.
É um tal de tapa na orelha e cotovelo no peito que nunca se viu.
Parece uma zona franca. Tudo pode abaixo da linha da bola.
E nesse vai e vem, o gato se esfrega. Grita. Rola na dividida com o beque.
E reclama.
Como reclama!
Numa dessas idas e vindas à área, em um jogo pegado. Dos bons, daqueles que marcador é rei. Percebi algo inusitado.
Em meio a trombadas e cotoveladas a procura da bola, havia um ser atônito. De olhos esbugalhados. Parecia congelado, não dizia nada. Sequer piscava.
Parado. Viu toda a jogada se desdobrar. 
A bola, como que por crueldade  passou-lhe do lado.
Sequer esboçou  reação.
Quando voltou a si, constrangido pediu para sair.
Era lesão?
Cansaço?
Sem respostas apenas saiu.
Estava bem no jogo.
Mas saiu.
Saiu à revelia.
Da torcida que não compreendia. Achava mascaração.
Do treinador que esbravejava impotente à vontade do atleta.
Saiu.
Saiu do campo o jogador olho no olho. Um driblador chato.
Apenas saiu.
Ainda atônito, trocou de roupa. E disse que não voltaria mais.
Cabisbaixo aceitava a situação.
Ninguém entendia o acontecido.
Ninguém. 
Até olhar para o lado do campo e observar o seu marcador cheirando o dedo e dizendo em alto e bom som:
- Poxa comeu o que hoje?



segunda-feira, 19 de junho de 2017

O buraco


Fonte: http://abolaquepariu.com.br/2016/11/futebol-o-brasil-importou-e-transformou-em-arte/ 




O buraco é algo abstrato.
Ser permanente na cabeça de gênios.
Não pertence a indivíduos comuns.
Por ser abstrato só é percebido como consciência.
O buraco é algo presente e constante em uma partida de futebol.
É tão constate que deveria ser tema de debates da Física e da Filosofia, e não apenas do Esporte.
A origem do buraco no futebol está no drible, diriam os físicos e filósofos mais aplicados.
Na troca rápida de movimento.
No conhecimento do peso e da aceleração.
No chute parabolar.
No tapa por elevação.
No toque sem peso.
Chegariam a conclusão que o buraco é a própria consciência do jogo.
Nós operários dos campos só enxergamos aquilo que nos está dado pela visão.
O gênio não.
Entre dois beques corpulentos, ele vê o vazio.
No movimento do goleiro, pensa em velocidade e força.
Em uma paralela, enxerga o ponto futuro.
Criam dezenas de possibilidades com um único olhar para a meta.
O campo para esse tipo de jogador é uma grande forma ovalada, repleta de possibilidades.
Estão em todos os espaços, gostam da bola.
Entre eles, a bola e o adversário, existe um vazio a ser preenchido.
Deslocam-se matematicamente pelo campo. Em um movimento elíptico, recriando dimensões, abstraindo o espaço, sintetizando tal como os poetas.
Não há zagueiro caneludo e nem volante trombador para esses criadores de espaço.
A qualquer momento na partida inverterão a ordem do movimento.
A qualquer momento na partida desafiaram o óbvio.
A qualquer momento na partida encherão nossos olhos com a plasticidade de seus movimentos.
O buraco no futebol, como diria meu avô, "nasce na malícia".







sábado, 17 de junho de 2017

Porque mudou o perfume?




Se tem uma espécie que conhece  até o perfume do adversário, esse é o volante.
Caçador do meio campo, é o chato. Joga colado. Baforando na nuca do penúltimo da linha adversária.
Corre, pula e rola.
Volta e meia retorna com um pedaço do adversário nas travas.
Volante bom faz cara feia, ou já nasce com ela pronta.
Esse papo de jornalista de volante moderno, isso na várzea?!
Não existe.
O torcedor de alambrado gosta do cara que anda sujo. O trombador.
Cada carrinho é um gol. Uma agitação geral na turma da cerveja quente.
Em época de redes sociais, atacante faz propaganda do figura:
"Os mano não tem dó, racha carrinho até em roda de bobo".
"Trombei com o cara e fiquei rodando o resto do jogo".
"O pior é o jacaré, quando fecha boca a canela trinca".
"Fiquei cinco dias de cama depois de um de seus botes".
É pânico geral.
Tem atacante "ousadia e alegria" que quando vê a figura aquecer do outro lado, inventa estiramento. Em alguns casos, até a morte da mãe.
Quem tem juízo tem medo.
Já vi atacante mudar de posição no campo.
Bastou uma conversa de pé orelha. Um tapinha na mãe.
E está lá, o destemido trabalhando de cabeça de área.
O bom volante é o cartão de visita da defesa.
Zaga de volante brucutu, tem beque homicida.
Todo time tem seus esquentadinhos. Xingam, intimam o adversário. Sempre estão dispostos a ir para o confronto.
Mas o volante não.
Calmo.
Até quando o corpo a frente se contorce.
Sempre calmo.
Bate e oferece a mão para o adversário.
- Levanta que foi de leve. Nem cheguei duro.
E o máximo do cinismo:
- Escorreguei professor. O campo está molhado.
O amigo leitor, se for amante do futebol, já deve ter presenciado conversas entre volantes e zagueiros. São monossilábicos, falam por códigos. Geralmente, precisos na ação:
-"Mata".
-"Dobra comigo e racha".
- "Morreu ele. Morreu."
- "Chega comendo, sem perdão".
-"Se der dois toques na bola é vala".
E assim se estende esse diálogo setorial.
E quando cola, chega e pergunta:
- Mudou o perfume?
Espantado, o pobre diabo levanta o braço e de migué sai de campo.




domingo, 4 de junho de 2017

Chuteiras velhas



Chuteiras velhas são incríveis. Trazem no corpo histórias de batalhas Homéricas, lances que somente a memória dos presentes podem desmentir. Chuteiras velhas tem sangue. São anatomicamente deformadas.
Usadas.
As chuteiras velhas conhecem os atalhos do campo.
Chuteiras velhas são velhas.
Cada risco no couro.
O bico reforçado com a costura.
Os buracos abertos em suas laterais.
Tudo. Tudo conta histórias.
No plural, não no singular.
Histórias que se superam em detalhes. Detalhes que sequer são lembrados pelas marcas no corpo.
Chuteiras velhas são como seus donos. Solitários contadores de histórias que envelhecem em suas paixões.
Se o campo diz sobre seus atores, o que dirá os apetrechos que os compõem?
É o branco da trave em uma das laterais.
É a grama que teimosamente está presa ao bico.
O calcanhar torto pela pisada.
A lama nas travas.
Tudo narra.
Mas narrar é ver o tempo passar. Melhor, narramos no tempo.
Chuteiras velhas são como fotografias desbotadas, falam sobre borrões. Ilustres e desconhecidos. Apenas borrões.
São estranhas aos que as desconhecem, mas estão lá.
Tortas e a postos, para se inundarem de vida em mais uma gigantesca disputa de várzea.
Mais uma disputa.
Mais uma história.
O tempo sempre há de vencer as chuteiras velhas. Que do tempo, só podem narrar.

domingo, 19 de março de 2017

Camisa com urucubaca


O cara não tira a camisa nem para dormir. Vai em casamento está lá, a camisa debaixo do terno.
Em enterro, aniversário da sogra e de sobrinho, até parece garoto propaganda. Lá a está, uma segunda pele, estampada com o sorriso do indivíduo na foto.
A camisa já anda sozinha.
Se abusar dá autógrafo e se escala.
Estou vendo o momento que o cara vai pedir direitos de imagem e fotografia de churrasco no fundo do quintal.
No time, já está dando o que falar.
Mas não é a presença da camisa que incomoda o grupo.
O problema é o fato de desde quando essa adentrou nosso vestiários, o nosso craque caiu de produção.
O cara batia de letra, agora dá de calo.
Bola de chapa anda subindo.
E a velocidade? Anda de cabeça baixa e resmungando.
Chegou a afirmar que estamos agindo como a imprensa, aumentando os fatos.
Que é pura intriga.
Quem dera.
Podemos até aumentar, mas que o fato existe. Ah, esse existe.
Na resenha, caiu na roda.
Virou até verbo.
Teve membro da diretoria que preocupado, procurou pastor, padre e pai de santo com a fotografia do indivíduo e a camisa para ver se era trabalho feito.
Os atletas mais espirituosos, na oração do jogo, clamam a Deus com os pulmões inflados.
Creio que alguns, estão até colocando o seu nome nas intenções de reza.
Hoje, trocou de camisa.
Não falou o motivo. Mas trocou.
Até gol fez.


segunda-feira, 6 de março de 2017

Movimento parabólico

Desolados, jogadores do Bayern não acreditavam no que tinha acabado de acontecer. Final da taça da Liga dos Campeões da UEFA de 1998-1999 entre Bayer de Munique (1) e M. United (2) no Estádio Camp Nou, Barcelona, Espanha. “Três minutos de acréscimo. Dois gols. E um título surreal.” 
Fonte: https://imortaisdofutebol.com/2013/05/23/jogos-eternos-manchester-united-2x1-bayern-munchen-1999/ 

Atônito ele observava o movimento parabólico que se formava no espaço.
Contemplava impotente a bola subir a uma altura que lhe causava alívio.
Entretanto, fora a queda que mudou a história.
Seus olhos abriram-se como se quisessem saltar para fora.
Derrapava na lona com o corpo ainda deitado.
Esticou braço.
Pernas.
Até o pensamento.
Era a expressão máxima do desespero.
Mas, pouco podia fazer.
Viu-a entrar e prender-se a rede, era como se a própria dissesse "FOI GOL E PRONTO".
Desesperado e ainda de joelhos socava o chão e maldizia a sorte.
Sentia-se sozinho, humilhado. Sem chão.
Aos trinta e quatro minutos, conseguira defender quase tudo. Conseguiram marcar quase todos.
Mas o QUASE indica que algo ficou, que algo passou.
Todos estavam praticamente dentro do gol. Mas como um ato falho, esqueceram a entrada da área.
Foi uma meia bicicleta.
Um belo movimento pendular.
Havia uma perna direita livre.
Havia um meia livre.
Havia um corpo com espaço para movimentar-se.
Entre o silêncio do chute e a explosão eufórica do gol, havia uma estrela.
E como brilha essa estrela.


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Na resenha


Aí, vem o indivíduo, ensopado em suor. Senta-se com os amigos em volta da mesa. Suas chuteiras ainda estão tomadas de grama recém batidas no meio fio, grita ao atendente do bar:
- Parceiro traz um cerva pra "nóis".
O Atendente responde:
- Qual?
Sem pestanejar vem a resposta, típica de quem tem sede.
- A mais gelada.
É uma relação quase mecânica. Boleiro e botequeiro são assim.
Um depende do outro.
Se o bar for na beira do campo, o dono do estabelecimento vira patrono do time. Põe o santo do vestiário na altar. Decora a parede do estabelecimento com as formações da equipe, com direito a parede de troféus e fotografia do elenco campeão. A paixão é tanta que indivíduo garante até o "doce".
Em meio ao cheiro de urina que transborda do banheiro mal acabado, surgem os mais diversos nomes e apelidos batizados nas resenhas.
Macumba.
Zé Bagaça.
Neguinho do Chinelo.
Comedor.
Indião.
Juninho Traíra.
Banana.
Queixada.
E tantos outros nomes advindos dos trejeitos físicos deste panteão de atletas.
Mas ultimamente meu amigo, a coisa anda complicada. É nome composto daqui, no diminutivo dali. Um festival de sandalinha. Dos antigos boleiros bons de resenhas monossilábicos na escolha da bebida, surgiu um tipinho, "O PATROCÍNIO MASTER".
É o chato.
Chega no bar tomado ducha
Guarda as chuteiras em necessaire.
E pior.
Escolhe bebida pela marca.
Aí não dá.
Chega ser estranha a conversa.
- Aí parceiro, tudo bem?
O dono do bar já estranha.
Sujeito limpo, de cabelo escovado. De onde veio?
- Rola uma Paulaner Hefe-Weissbier Naturtrüb?
Sem entender nada, e com a toalha que acabara de secar o suor no ombro, o pobre atendente pergunta?
- O quê?
- Se não tiver, pode ser uma Oettinger Pils ou Dab Original Dortmunder.
Bom, pensa o o nobre atendente. Estava na beira de campo. Mesmo limpo, o rapaz estava no meio da galera do time. Só podia ser resenha.
De forma sagaz, entendeu, "está me zoando, acha que não manjo de futebol".
Nesse momento, mais que depressa, o atendente do bar respondeu:
- É um bom time, mas perdeu de novo para o Bayer.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Água Milagrosa



A cabeça do boleiro é um canteiro fértil de superstições.
Toda partida de futebol na várzea tem os curandeiros de plantão, uma verdadeira equipe de mandingueiros e primeiros-socorros.
Muitas vezes o indivíduo que descansa a bordoada é o primeiro a prestar os reparos médicos ao atleta lesionado.
São diversos rituais:
O estica a perna que passa.
A turma do "não levanta não".
O "não deixa o sangue esfriar"
"Traz o doutorzinho".
Mas há um tratamento que é regra geral. Tiro e queda.
Antes mesmo de pastores venderem copinhos por  dez, cem ou mil reais, os boleiros já haviam descoberto as maravilhas medicinais da água.
Bateu a cabeça, busca água e joga na nuca. Tiro e queda.
Torceu o joelho, joga água que alivia a dor.
Vai desmaiar? Bebe água que passa.
Quer ver desespero em beira de campo. É quando tem corpo rolando na grama, e não há uma garrafa de água por perto.
É um corre-corre.
Nego correndo pra todo quanto é lado.
Atrás de um copo salvador.
Imagina se o jogo é do lado de igreja com culto.
Rapaz, seria uma invasão das chuteiras.
Ou de forma planejada e educada.
- O pastor tem copinho milagroso ai?


segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Chuteiras usadas



Lembro de meu primeiro par de chuteiras. Uma OLYMPIKUS preta,  de oito travas rosqueadas, de sola toda cravejada em pregos. O tipo do material entregava as intenções de seu antigo proprietário, o Russão. Apelido que sustentava com orgulho em seu porte dois por dois abaixo de sua vasta cabeleira vermelha. Pessoa simpática, dos campos e das rodas de samba. Amou em vida três coisas: futebol, mulheres e a boa vadiagem. Povoava as ruas da Vila Recreio com seu sorriso aberto e coração mole.
Mas no campo não.
Era conhecido por sua habilidade e "amabilidade" com os adversários.
Sempre com um belo toco ou uma agulha para se apresentar.
Dizia que isso empunha respeito.
Levava-me aos campos.
Como adorava as férias de dezembro. Sabia que neste período o acompanharia em sua rotina futebolística, que ficaria horas a fio pendurado no alambrado do campo da Vila Recreio.
Quando entrei em meu primeiro time, não deu outra.
Chamou-me de canto, e ensinou-me o "cartão de visitas". Uma aula com a seriedade que se espera dos especialistas.
Em seu coração de tio, numa euforia quase paterna, correu à dispensa da casa de meus avós. Voltou de lá com um sorriso que lhe cobria o rosto largo e com um par de chuteiras surrado pelos campos da várzea londrinense.
Seus olhos grandes estavam mareados.
Continuou a sua aula, sem sorrir. Lição a lição.
Era uma cartilha de atividades de incumbência do beque na entrada da área.
O antijogo por excelência. Do tapa na bunda ao pisão no pé. A cada ensinamento, uma baforada no cigarro, que ficava de canto de boca e a célebre frase: "entrada da área é coisa séria, passou é caixa. Então não passa".
Orgulhava-se disso.
Era uma verdadeira aula de malandragem futebolística.
Dos malandros do Buracão, da Ricardo, da Fraternidade.
A chuteira era de número quarenta e dois. Mas, pelo tamanho do laceado, duvidava-se das medidas oficiais.
Experimentei-a de imediato.
Serviu. Como serviu.
Indiferente ao tamanho. Orgulhoso a arrastava para todos os campos. Das peladas aos jogos.
Corria com os pés calçados a dois meiões, que insistiam em sambar dentro daquela forma.
Era uma persistência em equilíbrio a cada corrida.
Corri com elas em terrões. Campos alagados. De grama alta ou inexistente.
Suas travas de rosca, a medida que intimidavam os adversários, causavam-me lesões nas solas dos pés. A cada jogo, uma nova área de "sangue pisado".
Eram tempos de sonhos. Jogos entre meninos que se viam homens.
Talvez a maior referência futebolística que tive em toda minha vida, foi um mito varzeano, que há vinte anos não canta. Não samba. Não bebe, e sequer arruma encrencas dentro de campo.
Um mito que ecoa na memória. Com seu eterno sorriso aberto.









domingo, 22 de janeiro de 2017

Nada se cria na boca de crocodilo



O futebol é uma fauna, repleto de animais.
Galináceos, equinos, bovinos e répteis.
Nesta fauna o bicho mais perigoso tem perna curta, rabo de arraste e boca grande.
Esse é o tal do Crocodilo, uma racinha ardilosa. Fala pelas costas e come pelo rabo.
Falseia na parceria, e no meio da malandragem  é sujeito sem consideração.
Na boca de crocodilo nada serve, nada se cria. É raça de Exu.
Sujeito encantado que bate a amizade na língua preta.
É irmão da traíra.
Virou as costas o bicho puxa o tapete.
No futebol derruba os parceiros sentado no banco.
Tem o olho ruim que cava buraco e murcha bola.
Com essa raça todo santo é pouco.
Corra com Santo Expedito.
Com Santo  Antônio.
Bata cabeça para Orixá e mesmo assim, com esse encosto, é difícil.
Quem não é do meio não entende o porque de tanta superstição.
Entra com o pé direito.
Três pulinhos e o sinal cruz.
Olha pro céu e agradece o Senhor.
É água de santo no vestiário.
Fitinha de Nosso Senhor do Bonfim.
Promessa a Nossa Senhora Aparecida.
Vale tudo para escapar do rabo deste bicho cascudo.
No campo crocodilo tem nome, sobrenome e apelido.
Esse parceiro de Zé Pelintra lhe dá o tapa nas costas preparado o velório.
Boleiro bom tem altar em casa, carrega patuá e toma benção de santo.
Deixa uma vela branca na janela e uma vermelha no canto da casa.
Antes da partida joga farelo de pão na entrada do campo.
Quando vê alguém se coçar diante disso, corre.
E como corre.
Mordida de crocodilo arranca pedaço.