terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Água Milagrosa



A cabeça do boleiro é um canteiro fértil de superstições.
Toda partida de futebol na várzea tem os curandeiros de plantão, uma verdadeira equipe de mandingueiros e primeiros-socorros.
Muitas vezes o indivíduo que descansa a bordoada é o primeiro a prestar os reparos médicos ao atleta lesionado.
São diversos rituais:
O estica a perna que passa.
A turma do "não levanta não".
O "não deixa o sangue esfriar"
"Traz o doutorzinho".
Mas há um tratamento que é regra geral. Tiro e queda.
Antes mesmo de pastores venderem copinhos por  dez, cem ou mil reais, os boleiros já haviam descoberto as maravilhas medicinais da água.
Bateu a cabeça, busca água e joga na nuca. Tiro e queda.
Torceu o joelho, joga água que alivia a dor.
Vai desmaiar? Bebe água que passa.
Quer ver desespero em beira de campo. É quando tem corpo rolando na grama, e não há uma garrafa de água por perto.
É um corre-corre.
Nego correndo pra todo quanto é lado.
Atrás de um copo salvador.
Imagina se o jogo é do lado de igreja com culto.
Rapaz, seria uma invasão das chuteiras.
Ou de forma planejada e educada.
- O pastor tem copinho milagroso ai?


segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Chuteiras usadas



Lembro de meu primeiro par de chuteiras. Uma OLYMPIKUS preta,  de oito travas rosqueadas, de sola toda cravejada em pregos. O tipo do material entregava as intenções de seu antigo proprietário, o Russão. Apelido que sustentava com orgulho em seu porte dois por dois abaixo de sua vasta cabeleira vermelha. Pessoa simpática, dos campos e das rodas de samba. Amou em vida três coisas: futebol, mulheres e a boa vadiagem. Povoava as ruas da Vila Recreio com seu sorriso aberto e coração mole.
Mas no campo não.
Era conhecido por sua habilidade e "amabilidade" com os adversários.
Sempre com um belo toco ou uma agulha para se apresentar.
Dizia que isso empunha respeito.
Levava-me aos campos.
Como adorava as férias de dezembro. Sabia que neste período o acompanharia em sua rotina futebolística, que ficaria horas a fio pendurado no alambrado do campo da Vila Recreio.
Quando entrei em meu primeiro time, não deu outra.
Chamou-me de canto, e ensinou-me o "cartão de visitas". Uma aula com a seriedade que se espera dos especialistas.
Em seu coração de tio, numa euforia quase paterna, correu à dispensa da casa de meus avós. Voltou de lá com um sorriso que lhe cobria o rosto largo e com um par de chuteiras surrado pelos campos da várzea londrinense.
Seus olhos grandes estavam mareados.
Continuou a sua aula, sem sorrir. Lição a lição.
Era uma cartilha de atividades de incumbência do beque na entrada da área.
O antijogo por excelência. Do tapa na bunda ao pisão no pé. A cada ensinamento, uma baforada no cigarro, que ficava de canto de boca e a célebre frase: "entrada da área é coisa séria, passou é caixa. Então não passa".
Orgulhava-se disso.
Era uma verdadeira aula de malandragem futebolística.
Dos malandros do Buracão, da Ricardo, da Fraternidade.
A chuteira era de número quarenta e dois. Mas, pelo tamanho do laceado, duvidava-se das medidas oficiais.
Experimentei-a de imediato.
Serviu. Como serviu.
Indiferente ao tamanho. Orgulhoso a arrastava para todos os campos. Das peladas aos jogos.
Corria com os pés calçados a dois meiões, que insistiam em sambar dentro daquela forma.
Era uma persistência em equilíbrio a cada corrida.
Corri com elas em terrões. Campos alagados. De grama alta ou inexistente.
Suas travas de rosca, a medida que intimidavam os adversários, causavam-me lesões nas solas dos pés. A cada jogo, uma nova área de "sangue pisado".
Eram tempos de sonhos. Jogos entre meninos que se viam homens.
Talvez a maior referência futebolística que tive em toda minha vida, foi um mito varzeano, que há vinte anos não canta. Não samba. Não bebe, e sequer arruma encrencas dentro de campo.
Um mito que ecoa na memória. Com seu eterno sorriso aberto.









domingo, 22 de janeiro de 2017

Nada se cria na boca de crocodilo



O futebol é uma fauna, repleto de animais.
Galináceos, equinos, bovinos e répteis.
Nesta fauna o bicho mais perigoso tem perna curta, rabo de arraste e boca grande.
Esse é o tal do Crocodilo, uma racinha ardilosa. Fala pelas costas e come pelo rabo.
Falseia na parceria, e no meio da malandragem  é sujeito sem consideração.
Na boca de crocodilo nada serve, nada se cria. É raça de Exu.
Sujeito encantado que bate a amizade na língua preta.
É irmão da traíra.
Virou as costas o bicho puxa o tapete.
No futebol derruba os parceiros sentado no banco.
Tem o olho ruim que cava buraco e murcha bola.
Com essa raça todo santo é pouco.
Corra com Santo Expedito.
Com Santo  Antônio.
Bata cabeça para Orixá e mesmo assim, com esse encosto, é difícil.
Quem não é do meio não entende o porque de tanta superstição.
Entra com o pé direito.
Três pulinhos e o sinal cruz.
Olha pro céu e agradece o Senhor.
É água de santo no vestiário.
Fitinha de Nosso Senhor do Bonfim.
Promessa a Nossa Senhora Aparecida.
Vale tudo para escapar do rabo deste bicho cascudo.
No campo crocodilo tem nome, sobrenome e apelido.
Esse parceiro de Zé Pelintra lhe dá o tapa nas costas preparado o velório.
Boleiro bom tem altar em casa, carrega patuá e toma benção de santo.
Deixa uma vela branca na janela e uma vermelha no canto da casa.
Antes da partida joga farelo de pão na entrada do campo.
Quando vê alguém se coçar diante disso, corre.
E como corre.
Mordida de crocodilo arranca pedaço.