sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A regra 12 e a ética rodriguiana

fonte:
http://redeglobo.globo.com/globoteatro/bis/noticia/2013/09/nelson-rodrigues-fas-famosos-falam-de-sua-admiracao-pelo-autor.html


Sempre tive comigo que a falta faz parte do jogo, é ação do esperto, do sábio futebolístico, que entende e respeita a destreza do adversário. RESPEITA e ENTENDE, não disse que ACEITA.
Os aforismos povoam o fino das narrativas futebolística. E o meu, era dotado de uma honestidade dos grandes homens. A mais pura ética de zagueiros educados com entrevistas de Wilson Gottardo e leitura de Albert Camus.
Hiperbólica por natureza, as vozes que alimentam esse imaginário se fazem valer dos exemplos mais esdrúxulos ou improváveis. 
Essa semana, peguei-me lembrando do grande Nelson Rodrigues.
Não sem motivo.
Em meio ao Fla-Flu das organizadas dos presidenciáveis, deparei-me com suas palavras soltas em um artigo. Sem contexto. Citada, de forma cruel. Com página e data, e basta.
Suas palavras estavam soltas, mas não sem sentido. 
Li. Ruminei, palavra a palavra. 
Cada vogal. 
Cada consoante. 
Ponto a ponto. 
Tentei me desvincilhar do texto. Sequer lembro do autor. Ou do que se tratava o material, mas as palavras rodriguianas.
Ah! Essas palavras. Essas as gravei, como uma cicatriz.
Ecoavam-me. Convidavam-me a rumina-las.

"Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos".

Sobre o autor?
Jornalista e torcedor fanático do Fluminense.
Esse era Nelson Rodrigues.
Justo o Fluminense!
O time que nos deve a série C. 
Nos deve pela moralidade do futebol. 
O time dos tapetões.
Nunca tão poucas palavras foram tão verdadeiras.
Ruminavam-me. Não mais as ruminava. Ruminavam-me.
- "É a falta de caráter que decide uma partida".
A falta de caráter.
La mano de Dios.
O tapinha de Thierry Henry.
Os giros. 
Os ais. 
E tudo quanto é espertezas surrupiosas.
Realmente, Nelson Rodrigues estava coberto em suas razões. São três momentos da ética cujos bons sentimentos não se aplicam.
Há meses, vivemos um Fla-Flu que ambas as torcidas jogam uma partida de mentiras.
E o irônico!
As pessoas querem. Clamam por serem enganadas.
Elegeremos o primeiro presidente de campanha em Whatsapp, Instagram e Facebook.
Vivemos em rede. Perdemos o contato físico. 
O cara a cara.
Campanhas fantasmas, sem debates.
Sem debates!
Um facínora que se fez por um kit gay.
Talvez, fantasia e sonho de consumo de muito pai de família.
Daria um conto.
Assim como na literatura, a política passou a se alimentar de veredas midiáticas.
O futebol iniciou essas discussões ao trazer para os gramados os craques de vídeo tape.
É demais para o meu Brizolismo, Lulismo, Curintianismo, varzismo. 
É demais para qualquer ismo destes tantos anos de vida.
Mas de todos, o que mais sofre, é o saudosismo. 
Acabou o palanque.
O bate-boca.
Sem direito a uma nova Democracia "curintiana".
Sem Dotô e Casão.
Bêbados e conscientes.
Nunca Nelson Rodrigues, o homem que não errava, esteve tão certo.
Secou. 
Não há mais malandro no campo.
Sequer na várzea.
Não temos embates.
Tudo. Infinitamente tudo se decide pela regra.
Ou melhor, em suas brechas.
Estamos na era do VAR.
Sem banguelas de radinho na arquibancada.
Como o Flamengo deixa de ser grande com isso.
Hoje é no grito.
Lá do alto. 
Das numeradas e cativas.
É tudo no pode ou não pode.
E as más intenções se alimentam disso.
Da regra 12.
De subterfúgio virou  um tumor.
Um buraco negro de replays e fones.
Efetivamente, apresentaram-nos a regra 12.
Vale tudo.
Do ponta-pé à voadora.
Está na moda o fake.
Palavra gringa para classificar o mentiroso.
Mas pior que o mentiroso é o cidadão que se pretende.
Se pretende enganar.
Mas pode.
Na regra 12, acreditamos no que queremos.
Míopes como árbitros condescendentes.
A regra 12 nos permite a passionalidade. Sermos seletivos em sua aplicação.
Como dizem os entusiastas: 
"- Podemos tirar quem quisermos".
Está na regra!
É interpretável e pronto. 
E a interpretação que vale?
A minha. É óbvio.






domingo, 7 de outubro de 2018

Moldado a facão

O grande Gilmar Fubá na Várzea, na Copa Kaiser, 2012.
fonte: https://esporte.uol.com.br/futebol/campeonatos/copa-kaiser/ultimas-noticias/2012/03/27/futebol-de-varzea-discute-ate-teto-salarial-apos-times-gastarem-mais-de-r-100-mil-por-ano.htm


As lembranças parecem ser a força deste gênero literário tão prosaico que é a crônica. Lembrar, talvez seja a única forma de nos mantermos ativos.
Pois, o lembrar nos permite a saudade. E isso, por si só, já basta.
Hoje, em campo, a pilha era tanta, que lembrei do finado João Carlos.
Para ele, jogo pilhado era festa. Gostava de irritar a torcida adversária. volta e meia dava um atropelo nos canela cinza da beira de campo.
Juiz com ele?
Esse não tinha vez.
Eram vários: "pega leve João". Fora e dentro do campo.
Mas não tinha jeito. quando o homem cismava, acabou. Ia dar confusão.
Era um mestra na malandragem em campo.
Sabia jogar no psicológico. Desestabilizando o adversário e a arbitragem. Era o que dizia:
- Vamos jogar na mente deles. Dá uma, para os caras saberem quem vai bater e quem vai apanhar no campo.
Era uma mistura de habilidade, raça e muita gritaria. Na várzea, muito jogo se ganha no grito e na cara feia.
Pois o boleiro que se presa, não dá ideia. Até quando está errado vai pra cima.
Cobra.
Dá de dedo.
Esbafora na cara de quem for.
Foi tenso.
Não sei se pela idade, pois já cheguei as 4.2.
Ou se foi pela partida que estava quente e bem pegada.
Briguei tanto, que me recordei de meu primeiro jogo no elenco de Titulares quando fui promovido da equipe de Aspirantes do Vasco da Vila Industrial.
Confesso que gelei. Gelei tanto quanto os meninos que correram ao meu lado hoje.
Mas oportunidades são oportunidades. E todos temos as nossas.
Hoje foi a deles.
Fizeram cara de bravos. Xingaram, e até bateram boca.
Em meio as rodinhas de empurra-empurra, tornei-me a recordar deste dia.
Já tinha experiência. Havia sido campeão do Interbairros de 1992 com o mesmo elenco. Jogava a partida de abertura dos Titulares. Vivia me lavando em cânfora, pois acreditava que aquilo ajudava no desempenho físico na partida.
Tinha moral no elenco e com a diretoria do time.
Era um dos zagueiros titulares da equipe.
Já tinha fama de jantador.
Isso, aos 16 anos de idade.
Mas, ainda era um moleque. Jogava no domingo, e na segunda ficava de olho na programação esportiva da Rádio Londrina. Mal respirava, à procura de algum comentário sobre a jovem dupla de zagueiros que assustava experientes atacantes como Tiziu e Marcão.
Já havia sido expulso por briga em semifinal de campeonato. fora que nunca afina nas muitas tretas de campo. Saiu porrada. Era um dos primeiros a chegar, sempre com empurrões e limpa trilhos. Um orgulho para quem estava começando. Isso dava moral com os parceiros e com a torcida.
- Fulano? Esse não arrega não. Vai pra cima e tenta a sorte.
Era assim que ria o pessoal do alambrado.
Mesmo assim, tremi ao escutar o meu nome como zagueiro titular naquela partida.
Seria titular, na equipe de Titulares.
Um nível acima.
Jogaríamos no campo da Água das Pedras, contra um time local, que acabara de ser campeão em Primeiro de Maio.
Mas o que me fez tremer, não foi o adversário.
Foi o fato de ter que jogar ao lado do grande João Carlos. Cena que se repetiu durante toda aquela temporada.
Não era qualquer zagueiro.
Estava do lado de uma lenda do Fraternidade, da Vila Ricardo, do CSU e da Vila Santa Terezinha.
Carrancudo e de pernas tortas. Baixo para zagueiro.
Dono de um tempo de bola impressionante.
Iria dividir a entrada da área com um zagueiro experiente. Malandro de bola que não admitia erros.
substituiria o seu irmão Ná.
Estava tão pálido ao entrar em campo que ele logo percebeu.
Enquanto batíamos bola na lateral do campo, se aproximou, e de forma direta me perguntou:
- Vestiu o uniforme?
Sem entender, respondi-lhe que sim.
Seco, sem dar margem para ser questionado:
- Então você sabe jogar. Vamos para o jogo, e se o centroavante não tiver espaço, você foi o melhor em campo.
Essas foram as minhas boas vindas no Titular.
Era a deixa que queria.
Perdemos a partida por um placar simples, em um jogo que tiveram que trocar  o centroavante devido aos "contatos" de jogo.
Foi uma partida memorável.
Mas o que ficou daquela partida foi a fala do João.
Nada de "vamos lá" ou "pega leve com o moleque".
Entrou em campo.
É homem.
Se é homem, então tem que jogar como homem.
O boleiro na várzea. O boleiro, não o jogador.
O boleiro é moldado no facão.
Esse mostra a sua natureza em jogos difíceis.
Afinal, todo homem gosta é de grandes desafios.
Hoje, repeti aos garotos essa frase várias vezes ao longo do jogo.
Tinha que mante-los pilhados. Atentos.
Tem jogo que a rodagem faz com que você assuma o psicológico da disputa.
Era assim o João em campo.
Pilhava todo mundo.
Foi um ídolo que vi de perto. Ao lado.
Fui moldado no facão. E hoje, pude ver meninos assumirem o papel de homens.
Trombarem como homens.
Chamarem a dura responsabilidade da cobertura.
Vi um garoto silencioso emendar dois gols de placa.
Briguei com quem pude brigar. E olha que foi com quase todo mundo.
É o problema da peça bruta. A principal qualidade da malandragem.
Coisa que só se aprende no campo.
À minha frente, um garoto.
 Tremeu quando nosso volante foi expulso.
Tremeu, mas não amarelou.
 Não tinha jeito, seria ele mesmo.
Jogou. Bateu e jogou.
Lembrou-me muito um jovem que a exatos 25 anos entrava inseguro em campo, cuja  receptividade, foi a mesma:
- Se ele não tocar na bola, você jogou muito.






segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Delicadeza em pessoa



Ele teve a pachorra de dizer que só havia pego na bola.
Na bola!
Afinal, qual a intenção última da disputa futebolística?
Oras! Conquistar a bola.
E era isso que havia feito. Conquistado na raça, do jeito que a torcida gosta.
Um lindo jacará ao estilo Junior Baiano.
Como prêmio, o cartão amarelo.
E para provocar ainda dizia:
- Poderia ter pego o adversário.
Se a atingida foi a bola, então porque marcou a falta?
Era o que perguntava.
Porque deu a falta.
Ah! Isso é pessoal. Ficou clara a implicância. Não havia rompido ligamentos, sequer um entorse. E o autoridade passa uma dessa.
Agora árbitro virou futurologista?
É médico ortopedista?
A gente mergulha no lance e o assoprador tem o diagnóstico.
Isso é ofensivo.
Como assim amarelo?
A janta foi na bola. Foi bonito. Plástico.
Sem discussão. Altivo, quase a sombra da arrogância. Lá estava ele com o cartão em riste. Convicto de sua decisão.
Gritava. Enfiava-lhe o dedo à cara. E nada. Sequer olhava. Mantinha a punição erigida em sua mão direita.
A raiva só aumentava. Estava inconformado.
Amarelo?
Mas foi apenas um carrinho!
Alguns árbitros são verdadeiras mães de atacante. Gritou "ai". O assoprador aponta.
Isso irrita até zagueiros com a calma de um Gamarra. Imagina um zagueiro criado na tradição de caçador.
O distinto apitador resolveu implicar.
Deu de tudo.
Encontrão de leve.
Falta.
Tapa no peito.
Falta.
Trombada no ombro.
Falta.
Não tinha jeito. A cada lance uma falta.
Era jogo para ir embora mais cedo.
Dito e feito.
Sobrou uma agulha, e lá estava ele.
Como uma mãe acolhedora, pronta para embalar o atacante.
A luz do sol ficou azul por alguns segundo. O figura, apontava o cartão para o céu. O mais alto que conseguia.
Com azul não há conversa.
É beira de campo ou chuveiro mesmo.


sexta-feira, 22 de junho de 2018

Patriotismo sazonal

fonte da imagem: http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/fotos/2014/06/leitores-enviam-fotos-de-ruas-enfeitadas-para-copa.html


Quarta-feira em dia de jogo de seleção. As ruas estavam vazias. Ou praticamente vazias. Transitavam pelas vias alguns poucos desinformados, e outros, esses que deliberadamente, como réprobos da pátria, ignoravam os heróis nacionais que em questão de poucas horas entrariam em campo.
O que se multiplicava pelas esquinas eram vendedores de camisetas, bandeiras e todo o tipo de souvenir patriótico. Senti-me um traidor. Mas continuei minha marcha.
As fachadas estavam decoradas. Sinceramente, não muitas. Reflexo da péssima estreia contra a Suíça.
 Em um colégio ouvia-se o aquece de alunos na organização do grito de possíveis gols canarinhos. Resisti a tudo. E rumei para o trabalho. Ao estacionar, uma senhora questionou-me sobre sua bandeira:
- Nossa bandeira está visível.
Disse-lhe que sim.
Continuou:
- Mas está bonita? O que acha?
Ri, e disse-lhe que estava bonita. Bonita e visível.
Perguntava-me como se quisesse confirmar seu voto patriótico.
Fez-me lembrar de minha infância. De minha primeira Copa.
Na escola, pintávamos bandeirinhas em cópias mimeografadas ainda cheirando a álcool.  Não eram copias qualquer. Havia dizeres. Dizeres de apoio. Frases otimistas que segundo nossas mentoras, levariam energia positiva aos nossos craques, que em seu heroísmo homérico confrontariam em campos estrangeiros, inimigos vis.
Lembro-me das bandeiras pintadas com guache nos muros da escola. Dos jogos de figurinhas nos intervalos. Os gizes coloridos redecoravam o piso do pátio. Discutíamos avidamente os craques das rodadas. As jogadas. Sempre observados por olhares curiosos. Pareciam aprender sobre a magia da bola, através da conversa de meninos. Meninos. Copa era assunto sério.
Era tamanha a euforia, que as zeladoras sempre carrancudas com nossos deslizes, sequer manifestavam. Ao contrário, assistiam às partidas no pátio, aplaudiam-nos. Até torciam.  Arriscavam em comentários futebolísticos. Algumas, sensibilizadas pelo momento, trazia-nos figurinhas.
Em época de Copa, éramos comandados por senhoras. O hino nacional era executado diariamente. E, em jogos da seleção, cantado a pulmões cheios. Cheios de ar e esperança. Sentia-me perfilado ao lado de Sócrates, Zico, Edinho e companhia. Como se tivesse a bola abaixo dos pés.
Era um patriotismo ingênuo. De saias. Cantado e pintado. De professoras, em sua maioria, senhoras, que nos educavam em um civismo maternal.
Era um patriotismo cíclico.  Que como tal, terminara com as cobranças de pênaltis. Encerrado na parede francesa.
Adeus às bandeiras.
As fachadas voltaram a sua frieza.
E nós, voltávamos à rotina, na expectativa de que dali há quatro anos tudo fosse diferente.
E veio 1990.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Trabalho feito

fonte da imagem: http://novaspensatas.blogspot.com/

Deu ruim?
É trabalho feito.
Se o time está em crise, algo de errado está acontecendo em planos sobrenaturais.
Recentemente saíram com a história do uniforme macumbado.Isso mesmo, zicado, já veio com mandinga.
Boleiro é muito supersticioso. Basta dar-lhe motivo, e as histórias fluem.
A única certeza era que a zica alojou. Parecia ter incrustado no tecido. E de lá não saia.
Após a hipótese, surgiram as mais diversas justificativas para derrotas inexplicáveis.
Só não apontaram o óbvio.
Isso era evidente. A quem interessa explicar que o time não anda bem?
Melhor que a culpa seja do Diabo, ou de seus associados.
Caíram na besteira de fazerem tal apontamento.
Já apareceu no grupo aquele que dizia ser obra do Coisa Ruim.
Em meio as discussões acaloradas, teve membro da diretoria falando em queimar o pobre.
Mas não sem antes dar-lhe um banho de sal para purificar.
Indicaram pastores, rezadeiras e todo sujeito encantado capaz de tirar encosto.
Mas faltou consenso.
O whatsapp ferveu.
De um lado os descompromissados, brincalhões que não entendem a dimensão da crise instaurada no grupo. Afinal, tratava-se de um jejum de mais de dez partidas.
Do outro lado, a diretoria e os atletas compenetrados em romper com o olho ruim.
A bagunça estava formada.
Era jogador desesperado em meio a engraçadinhos que só queriam aprontar.
Um reclamava de cá, e postava até oração.
Outros, enchiam a tela de emojis e volta e meia um vídeo de sacanagem.
Em meio a tudo isso aparecia um mais informado avisando do jogo da Seleção.
Em reuniões assim tem a turma da visualização.
Esses, só observavam preferiram se abster.
Tudo parecia certo.
O Trabalho iria acontecer.
O pobre uniforme pagaria sozinho as caneladas na bola.
Sofreria o flagelo dos mártires.
Deu ruim.
Queima.
Reunião encerrada.
Até a próxima postagem.

"Jogo confirmado. Confirma ai quem vai"
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Um ou dois confirmaram.
E a culpa é do uniforme.




domingo, 3 de junho de 2018

Doutorzinho



Depois da água, somente o doutorzinho.
É infalível.
Indicado por especialistas para qualquer problema de origem futebolística.
Chegou na farmácia, é coisa certa.
Até parece que esses estabelecimentos tem um especialista em problemas da boleiragem.
Boleiro que se preza tem o seu doutorzinho na bolsa.
A qualidade deste produto é medida no cheiro. Quanto mais forte o odor da cânfora, maior as suas propriedades medicinais.
O que não falta em vestiários são histórias, e o cheiro de cânfora.
Para ser específico, histórias de lesões. É ombro fraturado, tornozelo torcido, estiramento, tendinite, e todas as mazelas que um corpo pode sofrer.
O velho Tulipa, que o diga. Centroavante dos bons, do tipo matador. Trombava com tudo quanto é tipo de zagueiro. Principalmente os que não rezavam para dormir. Desses parecia gostar mais.
Era uma verdadeira Enciclopédia Clínica Futebolística.
Franzino e de tipo cavernoso.
Caminhava com suas pernas compridas e secas, com as meias arreadas, como se quisesse provocar os marcadores. Tinha o rosto coberto de salientes "crateras", uma barba totalmente falha que se desenhava por esses relevos, e as marcas dos pontos.
Havia domingos que aparecia com um dos olhos roxos ou inchados.
- O que aconteceu rapaz?
Com o cigarro ainda na boca respondia com sua voz sempre serena, parecendo minimizar o feito.
- Isso aqui? Foi nada não. Foi no jogo de quarta e um caminhão sem freio que veio pra cima de mim. Mas nós classificamos.
Era só isso que importava.
A classificação.
Era um boleiro de espírito.
Tinha uma tolerância a dor invejável.
Em todo campo que íamos, apanhava. E como apanhava.
Centroavante habilidoso apanha muito.
E são esses tipos que traziam a resenha para dentro de vestiário.
Moleque novo. Ou ficava admirado ou tremia.
Comecei no futebol vendo-o se lavar de doutorzinho nas tardes de domingo.
Quando perguntava para que servia aquilo, dizia que era para se prevenir das pancadas.
Sempre acreditei que era um tipo de anestésico.
Teve época de levar garrafadas para beira do campo.
Era um Xamã artilheiro.
Com ele aprendi que quanto mais velho o boleiro, maior o número de lesões e principalmente, das histórias das lesões que tem para contar.  Em suas mochilas, encontra-se de tudo, ataduras, pomadas, adesivos e até telefone de pai de santo.
É tanta história que assusta.
Tem jogador que impressionado, aplica o santo remédio antes mesmo de entrar em campo. Até aqueles que não tem problema algum. Esses, aplicam para se prevenir.
Recentemente descobri que se cheira a pomada. Isso mesmo. Antes de entrar em campo, deve-se cheirar um pouco. Para "abrir os pulmões".
Não emprestamos chuteiras.
Mas caiu no chão e gritou.
Alguém já pergunta:
- Tem doutorzinho ai?


Cativa no campo da Santa Cruz



Jogo em domingo de apagão, União Santa Cruz 1 x 4 Saul Elkind, em 27 de maio de 2018.

sábado, 28 de abril de 2018

O primeiro gol


fonte: http://www.ibom.com.br/exibeNoticias.php?id=183 (Fabiano Oliveira)

Seus olhos sempre brilhantes, naquele momento abriam-se na intensidade do feito.
Lentamente expandiram-se no rosto como que espantados.
Sua boca estava entrecerrada com seus próprios dentes que apreensivos agrediam-lhe a carne.
Foram longos dois ou três segundos.
Entre o momento em que a bola dividida sobrou-lhe na entrada da área e a tomada de decisão.
Decisão certeira.
De treino.
Tal como repetido, errado e acertado tantas vezes.
Pisar e chutar.
Pisou. Sapateou na troca de pernas.
E chutou.
Chutou no cantinho.
O goleiro até foi. Esticou o braço. Os olhos. Os dedos e a alma.
Mas não alcançou.
Foi porque tem que ir e pronto.
A bola bateu caprichosamente no pé da trave.
Para o desespero do goleiro, entrou vagarosa.
Despretensiosa.
Quanto ao jovem artilheiro?
Esse, sem saber o que fazer, apenas observou.
Com os olhos arregalados e um sorriso surpreso no rosto.
O jogo já estava ganho.
Sequer tinha noção disso.
Apenas contemplou por segundos o feito.
E quando a bola determinou seu trajeto. Euforicamente se segurou.
Mesmo com os gritos de seu nome que vinham da arquibancada.
Virou-se para seu próprio campo.
Quando deu por si, já o abraçavam.
Foi uma experiência única. Foram seus primeiros abraços em equipe. Naquele momento, pelo menos naquele momento, estava inserido no grupo.
Pelo menos naquele momento, não era o menino lento e desajeitado, deixado no banco de reservas, aos caprichos do esquecimento do treinador.
Por alguns segundos todos o viram.










quarta-feira, 4 de abril de 2018

Márcio, você viu

Rodrigo, o zagueiro da DEDADA deixa a Ponte Preta

Os gritos eram fortes
"Márcio você  viu. Márcio, você viu"
O jovem estava transfigurado.
Contido inicialmente por dois, depois três jogadores. E todos aqueles dispostos a segura-lo. Esbaforindo palavrões, lutava contra braços e corpos que se colocavam a sua frente.
Queria a alma de nosso lateral, que impassível, apenas levantava o braço em sinal de que não fez nada.
Uma atitude incrível de quem acabara de receber um chute pelas costas.
Era um chora daqui, que cobro dali.
todos pendurados no Márcio.
"Vai ter que ter punição".
"Como assim?"
O que deu nesse moleque, que continuava a gritar em direção ao árbitro.
"Márcio, você viu".
"Você viu sim".
E Márcio, esse era o nome do árbitro. Um negro corpulento, alto, de uma calma invejável. Com o semblante dos justos, procurava no bolso esquerdo de sua camisa o cartão. Faria justiça.
Tamanha covardia não poderia deixar de ser penalizada.
Por um momento, tomou o vermelho em mãos.
Mas, antes de levantá-lo, como que assaltado por uma dúvida.
Eis que levanta o azul.
Agora, éramos nós os indignados.
"Poxa Márcio, foi agressão. Você viu."
"No futebol pode tudo. Mas chutar assim, já é covardia. Azul está barato"
Impassível, com um toco de lápis em sua mão direita apenas anotava.
Sequer nos deu atenção. E para piorar, disse:
"Volta em cinco. Faltam seis. volta em cinco".
Na saída de campo, o jovem que passara por mim, repetia,
"Um minuto, ah! Eu pego ele".
Sequer sentou. Amparado por amigos tentava justificar sua atitude.
Não se conteve.
Estava em cólera.
Xingava à beira do campo. Incrédulo e revoltado com a pena atribuída a seu destempero. E repetia para si
"Eu pego ele, me põe que eu pego ele".
Em um plano que seria o revide mais rápido da história do futebol. Passaram mil estratégias. Todas fadadas ao peso do tempo.
E a vítima?
Afastado do centro da confusão, apenas ria enquanto era fitado por aquele olhar sedento de vingança.
O jovem não se conteve.
Aquilo era demais.
Humilhante.
De fora do campo, o garoto gritou.
Gritou com fúria.
Com os pulmões cheios.
Como macho ofendido.
Indignado pela cegueira de todos.
"ELE ENFIOU O DEDO NO MEU CU. NO MEU CU, OUVIU?"

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Goleiro bom... Vê Lobisomem

Lev Yashin, goleiro russo, o maior de sua posição, de acordo com a grande imprensa futebolística. Jogou as copas de 1958,1962, 1966 e 1970. Seus números são inimagináveis.
Fonte: https://www.rbth.com/sport/2014/04/21/the_modest_man_in_black_why_lev_yashin_never_lost_his_humility_36023.html 

Você deve estar se perguntando o que a criatura peluda, o mensageiro de Satanás tem haver com futebol. Ou melhor, com a qualidade do goleiro.
Mas goleiro bom, vê Lobisomem.
Parece que o encarnado escolhe aqueles que revelará sua figura. Geralmente sujeitos pacatos, que de tão calmos, intimidam.
Não se assuste. A sua surpresa não foi muito diferente da que tivemos naquele domingo.
Era um domingo comum, como de hábito, o vestiário estava agitado. Cheio de resenha tomada por uma atmosfera de cânfora. Tamanha a bagunça que até música tinha.
Em raros momentos de seriedade, vinham as prévias sobre o adversário. Foi aí, que o inesperado aconteceu.
Estava lá.
Sentado em uma cadeira na ante-sala do vestiário.
Impassível.
O goleiro.
Ele e sua visagem.
O silencioso falou.
E o som de sua voz, silenciou a todos.
Até os marrentos pararam de graça. Tinha sujeito, que perplexo, ouvia-o com as calças ainda nas mãos.
Todos foram pegos de surpresa, pois nosso Yashin nunca está presente no vestiário. Assustamos, é um sujeito calado. Daqueles que chega em campo concentrado." Não dá ideia".
Não emite som até o apito.
Sua preparação para a partida é praticamente um ritual.
Aquece e treina sozinho.
Finta seco os adversários. Em silêncio.
Mede a área. Passo a passo.
Sequer frequentava o vestiário. E isso, deixou todos apreensivos.
Seus hábitos diferem do todo nós. Enquanto em meio às resenhas, enrolamos para entrar em campo, basta apontar na escadaria e lá está ele, debaixo das traves. Se movimentando de um lado para o outro.
Todo de preto.
Sinistra a imagem.
Teve adversário que em meio as tentativas frustradas de gol, desanimado chegou a mencionar que o homem tem mais de dois braços e muito, mas muito mais de três metros de altura.
Não duvido. Pois, já cheguei acreditar que era mandinga.
Coisa de rezadeira.
Uniforme encantado.
O homem é uma parede.
Basta o apito e o vulto negro se espalha pela área.
Sai do silêncio absoluto para um conjunto de xingamentos e reclamações.
É uma parede.
Daquelas bem feitas. Que não cedem a qualquer vendaval.
Uma parede preta, um Lev Yashin.
Em meio a tantas manias.
Nesse dia falou.
Estranho.
Justo ele puxou o assunto.
Justo ele.
Foi um silêncio total.
Arregalava os olhos e bufava, imitando o encarnado.
"- Ontem a noite eu vi um Lobisomem. E ele bufou para mim."
Arregalava os olhos e bufava.
Imitava os passos. E repetia:
"- Ontem a noite eu vi um Lobisomem. E ele bufou para mim."
Nem o mais abusado dos jogadores, ousou discordar.
Quem estava descalço desceu as pressas para o campo, as chuteira?
Calçaram do jeito que deu.
Não tocamos no assunto. Só jogamos.


sábado, 27 de janeiro de 2018

O gol

fonte: https://www.soumeier.com.br/noticias/futebol-de-rua-9-machucados-que-quem-jogou-ja-teve/

Lá estava ele, solitário encostado no muro.
Montado como os grandes. Em ferro. De boa soldagem. Solitário.
Estava atrasado, mas parei.
Não estava jogado, ou guardado para o momento de uma partida digna de sua presença.
Estava posto.
Sobre a calçada.
Mas posto. Devidamente, montado, com marcação e tudo que lhe diz respeito.
A sua frente, abaixo do meio fio, havia uma área marcada em branco.
Em tinta óleo, milimetricamente marcada. Nas dimensões oficiais dos moleques da rua.
Lembrei de minha infância. De quando pintávamos a rua com as cores de nossos times.
Cores subtraídas dos estojos de nossas professoras.
Algumas, generosas, enternecidas por nossos pedidos, guardava-os, com um carinho maternal. Outras não. Obrigávamos a vasculhar estojos e latões de lixo.
Mas, o objetivo era maior.
Eram arenas incríveis, que em época de Copa e Brasileirões, tornavam-se verdadeiras sedes futebolísticas.
Eram campos medidos "a pé". Gols de tijolos que geravam polêmicas.
Levávamos horas  no preparo da arena.
A bola?
Clássica "Dente-de-Leite", colada com chiclete. Toda desenhada.
Eram memoráveis as partidas de fim de tarde.
Por alguns segundos tive meus dez anos de idade de volta.
Contemplei atentamente aquele gol solitário, margeado por uma rua estreita.
Não era qualquer rua.
Não para mim. Não para o menino que sonha.