sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A regra 12 e a ética rodriguiana

fonte:
http://redeglobo.globo.com/globoteatro/bis/noticia/2013/09/nelson-rodrigues-fas-famosos-falam-de-sua-admiracao-pelo-autor.html


Sempre tive comigo que a falta faz parte do jogo, é ação do esperto, do sábio futebolístico, que entende e respeita a destreza do adversário. RESPEITA e ENTENDE, não disse que ACEITA.
Os aforismos povoam o fino das narrativas futebolística. E o meu, era dotado de uma honestidade dos grandes homens. A mais pura ética de zagueiros educados com entrevistas de Wilson Gottardo e leitura de Albert Camus.
Hiperbólica por natureza, as vozes que alimentam esse imaginário se fazem valer dos exemplos mais esdrúxulos ou improváveis. 
Essa semana, peguei-me lembrando do grande Nelson Rodrigues.
Não sem motivo.
Em meio ao Fla-Flu das organizadas dos presidenciáveis, deparei-me com suas palavras soltas em um artigo. Sem contexto. Citada, de forma cruel. Com página e data, e basta.
Suas palavras estavam soltas, mas não sem sentido. 
Li. Ruminei, palavra a palavra. 
Cada vogal. 
Cada consoante. 
Ponto a ponto. 
Tentei me desvincilhar do texto. Sequer lembro do autor. Ou do que se tratava o material, mas as palavras rodriguianas.
Ah! Essas palavras. Essas as gravei, como uma cicatriz.
Ecoavam-me. Convidavam-me a rumina-las.

"Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos".

Sobre o autor?
Jornalista e torcedor fanático do Fluminense.
Esse era Nelson Rodrigues.
Justo o Fluminense!
O time que nos deve a série C. 
Nos deve pela moralidade do futebol. 
O time dos tapetões.
Nunca tão poucas palavras foram tão verdadeiras.
Ruminavam-me. Não mais as ruminava. Ruminavam-me.
- "É a falta de caráter que decide uma partida".
A falta de caráter.
La mano de Dios.
O tapinha de Thierry Henry.
Os giros. 
Os ais. 
E tudo quanto é espertezas surrupiosas.
Realmente, Nelson Rodrigues estava coberto em suas razões. São três momentos da ética cujos bons sentimentos não se aplicam.
Há meses, vivemos um Fla-Flu que ambas as torcidas jogam uma partida de mentiras.
E o irônico!
As pessoas querem. Clamam por serem enganadas.
Elegeremos o primeiro presidente de campanha em Whatsapp, Instagram e Facebook.
Vivemos em rede. Perdemos o contato físico. 
O cara a cara.
Campanhas fantasmas, sem debates.
Sem debates!
Um facínora que se fez por um kit gay.
Talvez, fantasia e sonho de consumo de muito pai de família.
Daria um conto.
Assim como na literatura, a política passou a se alimentar de veredas midiáticas.
O futebol iniciou essas discussões ao trazer para os gramados os craques de vídeo tape.
É demais para o meu Brizolismo, Lulismo, Curintianismo, varzismo. 
É demais para qualquer ismo destes tantos anos de vida.
Mas de todos, o que mais sofre, é o saudosismo. 
Acabou o palanque.
O bate-boca.
Sem direito a uma nova Democracia "curintiana".
Sem Dotô e Casão.
Bêbados e conscientes.
Nunca Nelson Rodrigues, o homem que não errava, esteve tão certo.
Secou. 
Não há mais malandro no campo.
Sequer na várzea.
Não temos embates.
Tudo. Infinitamente tudo se decide pela regra.
Ou melhor, em suas brechas.
Estamos na era do VAR.
Sem banguelas de radinho na arquibancada.
Como o Flamengo deixa de ser grande com isso.
Hoje é no grito.
Lá do alto. 
Das numeradas e cativas.
É tudo no pode ou não pode.
E as más intenções se alimentam disso.
Da regra 12.
De subterfúgio virou  um tumor.
Um buraco negro de replays e fones.
Efetivamente, apresentaram-nos a regra 12.
Vale tudo.
Do ponta-pé à voadora.
Está na moda o fake.
Palavra gringa para classificar o mentiroso.
Mas pior que o mentiroso é o cidadão que se pretende.
Se pretende enganar.
Mas pode.
Na regra 12, acreditamos no que queremos.
Míopes como árbitros condescendentes.
A regra 12 nos permite a passionalidade. Sermos seletivos em sua aplicação.
Como dizem os entusiastas: 
"- Podemos tirar quem quisermos".
Está na regra!
É interpretável e pronto. 
E a interpretação que vale?
A minha. É óbvio.






domingo, 7 de outubro de 2018

Moldado a facão

O grande Gilmar Fubá na Várzea, na Copa Kaiser, 2012.
fonte: https://esporte.uol.com.br/futebol/campeonatos/copa-kaiser/ultimas-noticias/2012/03/27/futebol-de-varzea-discute-ate-teto-salarial-apos-times-gastarem-mais-de-r-100-mil-por-ano.htm


As lembranças parecem ser a força deste gênero literário tão prosaico que é a crônica. Lembrar, talvez seja a única forma de nos mantermos ativos.
Pois, o lembrar nos permite a saudade. E isso, por si só, já basta.
Hoje, em campo, a pilha era tanta, que lembrei do finado João Carlos.
Para ele, jogo pilhado era festa. Gostava de irritar a torcida adversária. volta e meia dava um atropelo nos canela cinza da beira de campo.
Juiz com ele?
Esse não tinha vez.
Eram vários: "pega leve João". Fora e dentro do campo.
Mas não tinha jeito. quando o homem cismava, acabou. Ia dar confusão.
Era um mestra na malandragem em campo.
Sabia jogar no psicológico. Desestabilizando o adversário e a arbitragem. Era o que dizia:
- Vamos jogar na mente deles. Dá uma, para os caras saberem quem vai bater e quem vai apanhar no campo.
Era uma mistura de habilidade, raça e muita gritaria. Na várzea, muito jogo se ganha no grito e na cara feia.
Pois o boleiro que se presa, não dá ideia. Até quando está errado vai pra cima.
Cobra.
Dá de dedo.
Esbafora na cara de quem for.
Foi tenso.
Não sei se pela idade, pois já cheguei as 4.2.
Ou se foi pela partida que estava quente e bem pegada.
Briguei tanto, que me recordei de meu primeiro jogo no elenco de Titulares quando fui promovido da equipe de Aspirantes do Vasco da Vila Industrial.
Confesso que gelei. Gelei tanto quanto os meninos que correram ao meu lado hoje.
Mas oportunidades são oportunidades. E todos temos as nossas.
Hoje foi a deles.
Fizeram cara de bravos. Xingaram, e até bateram boca.
Em meio as rodinhas de empurra-empurra, tornei-me a recordar deste dia.
Já tinha experiência. Havia sido campeão do Interbairros de 1992 com o mesmo elenco. Jogava a partida de abertura dos Titulares. Vivia me lavando em cânfora, pois acreditava que aquilo ajudava no desempenho físico na partida.
Tinha moral no elenco e com a diretoria do time.
Era um dos zagueiros titulares da equipe.
Já tinha fama de jantador.
Isso, aos 16 anos de idade.
Mas, ainda era um moleque. Jogava no domingo, e na segunda ficava de olho na programação esportiva da Rádio Londrina. Mal respirava, à procura de algum comentário sobre a jovem dupla de zagueiros que assustava experientes atacantes como Tiziu e Marcão.
Já havia sido expulso por briga em semifinal de campeonato. fora que nunca afina nas muitas tretas de campo. Saiu porrada. Era um dos primeiros a chegar, sempre com empurrões e limpa trilhos. Um orgulho para quem estava começando. Isso dava moral com os parceiros e com a torcida.
- Fulano? Esse não arrega não. Vai pra cima e tenta a sorte.
Era assim que ria o pessoal do alambrado.
Mesmo assim, tremi ao escutar o meu nome como zagueiro titular naquela partida.
Seria titular, na equipe de Titulares.
Um nível acima.
Jogaríamos no campo da Água das Pedras, contra um time local, que acabara de ser campeão em Primeiro de Maio.
Mas o que me fez tremer, não foi o adversário.
Foi o fato de ter que jogar ao lado do grande João Carlos. Cena que se repetiu durante toda aquela temporada.
Não era qualquer zagueiro.
Estava do lado de uma lenda do Fraternidade, da Vila Ricardo, do CSU e da Vila Santa Terezinha.
Carrancudo e de pernas tortas. Baixo para zagueiro.
Dono de um tempo de bola impressionante.
Iria dividir a entrada da área com um zagueiro experiente. Malandro de bola que não admitia erros.
substituiria o seu irmão Ná.
Estava tão pálido ao entrar em campo que ele logo percebeu.
Enquanto batíamos bola na lateral do campo, se aproximou, e de forma direta me perguntou:
- Vestiu o uniforme?
Sem entender, respondi-lhe que sim.
Seco, sem dar margem para ser questionado:
- Então você sabe jogar. Vamos para o jogo, e se o centroavante não tiver espaço, você foi o melhor em campo.
Essas foram as minhas boas vindas no Titular.
Era a deixa que queria.
Perdemos a partida por um placar simples, em um jogo que tiveram que trocar  o centroavante devido aos "contatos" de jogo.
Foi uma partida memorável.
Mas o que ficou daquela partida foi a fala do João.
Nada de "vamos lá" ou "pega leve com o moleque".
Entrou em campo.
É homem.
Se é homem, então tem que jogar como homem.
O boleiro na várzea. O boleiro, não o jogador.
O boleiro é moldado no facão.
Esse mostra a sua natureza em jogos difíceis.
Afinal, todo homem gosta é de grandes desafios.
Hoje, repeti aos garotos essa frase várias vezes ao longo do jogo.
Tinha que mante-los pilhados. Atentos.
Tem jogo que a rodagem faz com que você assuma o psicológico da disputa.
Era assim o João em campo.
Pilhava todo mundo.
Foi um ídolo que vi de perto. Ao lado.
Fui moldado no facão. E hoje, pude ver meninos assumirem o papel de homens.
Trombarem como homens.
Chamarem a dura responsabilidade da cobertura.
Vi um garoto silencioso emendar dois gols de placa.
Briguei com quem pude brigar. E olha que foi com quase todo mundo.
É o problema da peça bruta. A principal qualidade da malandragem.
Coisa que só se aprende no campo.
À minha frente, um garoto.
 Tremeu quando nosso volante foi expulso.
Tremeu, mas não amarelou.
 Não tinha jeito, seria ele mesmo.
Jogou. Bateu e jogou.
Lembrou-me muito um jovem que a exatos 25 anos entrava inseguro em campo, cuja  receptividade, foi a mesma:
- Se ele não tocar na bola, você jogou muito.