segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Chuteiras usadas



Lembro de meu primeiro par de chuteiras. Uma OLYMPIKUS preta,  de oito travas rosqueadas, de sola toda cravejada em pregos. O tipo do material entregava as intenções de seu antigo proprietário, o Russão. Apelido que sustentava com orgulho em seu porte dois por dois abaixo de sua vasta cabeleira vermelha. Pessoa simpática, dos campos e das rodas de samba. Amou em vida três coisas: futebol, mulheres e a boa vadiagem. Povoava as ruas da Vila Recreio com seu sorriso aberto e coração mole.
Mas no campo não.
Era conhecido por sua habilidade e "amabilidade" com os adversários.
Sempre com um belo toco ou uma agulha para se apresentar.
Dizia que isso empunha respeito.
Levava-me aos campos.
Como adorava as férias de dezembro. Sabia que neste período o acompanharia em sua rotina futebolística, que ficaria horas a fio pendurado no alambrado do campo da Vila Recreio.
Quando entrei em meu primeiro time, não deu outra.
Chamou-me de canto, e ensinou-me o "cartão de visitas". Uma aula com a seriedade que se espera dos especialistas.
Em seu coração de tio, numa euforia quase paterna, correu à dispensa da casa de meus avós. Voltou de lá com um sorriso que lhe cobria o rosto largo e com um par de chuteiras surrado pelos campos da várzea londrinense.
Seus olhos grandes estavam mareados.
Continuou a sua aula, sem sorrir. Lição a lição.
Era uma cartilha de atividades de incumbência do beque na entrada da área.
O antijogo por excelência. Do tapa na bunda ao pisão no pé. A cada ensinamento, uma baforada no cigarro, que ficava de canto de boca e a célebre frase: "entrada da área é coisa séria, passou é caixa. Então não passa".
Orgulhava-se disso.
Era uma verdadeira aula de malandragem futebolística.
Dos malandros do Buracão, da Ricardo, da Fraternidade.
A chuteira era de número quarenta e dois. Mas, pelo tamanho do laceado, duvidava-se das medidas oficiais.
Experimentei-a de imediato.
Serviu. Como serviu.
Indiferente ao tamanho. Orgulhoso a arrastava para todos os campos. Das peladas aos jogos.
Corria com os pés calçados a dois meiões, que insistiam em sambar dentro daquela forma.
Era uma persistência em equilíbrio a cada corrida.
Corri com elas em terrões. Campos alagados. De grama alta ou inexistente.
Suas travas de rosca, a medida que intimidavam os adversários, causavam-me lesões nas solas dos pés. A cada jogo, uma nova área de "sangue pisado".
Eram tempos de sonhos. Jogos entre meninos que se viam homens.
Talvez a maior referência futebolística que tive em toda minha vida, foi um mito varzeano, que há vinte anos não canta. Não samba. Não bebe, e sequer arruma encrencas dentro de campo.
Um mito que ecoa na memória. Com seu eterno sorriso aberto.









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