segunda-feira, 19 de junho de 2017

O buraco


Fonte: http://abolaquepariu.com.br/2016/11/futebol-o-brasil-importou-e-transformou-em-arte/ 




O buraco é algo abstrato.
Ser permanente na cabeça de gênios.
Não pertence a indivíduos comuns.
Por ser abstrato só é percebido como consciência.
O buraco é algo presente e constante em uma partida de futebol.
É tão constate que deveria ser tema de debates da Física e da Filosofia, e não apenas do Esporte.
A origem do buraco no futebol está no drible, diriam os físicos e filósofos mais aplicados.
Na troca rápida de movimento.
No conhecimento do peso e da aceleração.
No chute parabolar.
No tapa por elevação.
No toque sem peso.
Chegariam a conclusão que o buraco é a própria consciência do jogo.
Nós operários dos campos só enxergamos aquilo que nos está dado pela visão.
O gênio não.
Entre dois beques corpulentos, ele vê o vazio.
No movimento do goleiro, pensa em velocidade e força.
Em uma paralela, enxerga o ponto futuro.
Criam dezenas de possibilidades com um único olhar para a meta.
O campo para esse tipo de jogador é uma grande forma ovalada, repleta de possibilidades.
Estão em todos os espaços, gostam da bola.
Entre eles, a bola e o adversário, existe um vazio a ser preenchido.
Deslocam-se matematicamente pelo campo. Em um movimento elíptico, recriando dimensões, abstraindo o espaço, sintetizando tal como os poetas.
Não há zagueiro caneludo e nem volante trombador para esses criadores de espaço.
A qualquer momento na partida inverterão a ordem do movimento.
A qualquer momento na partida desafiaram o óbvio.
A qualquer momento na partida encherão nossos olhos com a plasticidade de seus movimentos.
O buraco no futebol, como diria meu avô, "nasce na malícia".







sábado, 17 de junho de 2017

Porque mudou o perfume?




Se tem uma espécie que conhece  até o perfume do adversário, esse é o volante.
Caçador do meio campo, é o chato. Joga colado. Baforando na nuca do penúltimo da linha adversária.
Corre, pula e rola.
Volta e meia retorna com um pedaço do adversário nas travas.
Volante bom faz cara feia, ou já nasce com ela pronta.
Esse papo de jornalista de volante moderno, isso na várzea?!
Não existe.
O torcedor de alambrado gosta do cara que anda sujo. O trombador.
Cada carrinho é um gol. Uma agitação geral na turma da cerveja quente.
Em época de redes sociais, atacante faz propaganda do figura:
"Os mano não tem dó, racha carrinho até em roda de bobo".
"Trombei com o cara e fiquei rodando o resto do jogo".
"O pior é o jacaré, quando fecha boca a canela trinca".
"Fiquei cinco dias de cama depois de um de seus botes".
É pânico geral.
Tem atacante "ousadia e alegria" que quando vê a figura aquecer do outro lado, inventa estiramento. Em alguns casos, até a morte da mãe.
Quem tem juízo tem medo.
Já vi atacante mudar de posição no campo.
Bastou uma conversa de pé orelha. Um tapinha na mãe.
E está lá, o destemido trabalhando de cabeça de área.
O bom volante é o cartão de visita da defesa.
Zaga de volante brucutu, tem beque homicida.
Todo time tem seus esquentadinhos. Xingam, intimam o adversário. Sempre estão dispostos a ir para o confronto.
Mas o volante não.
Calmo.
Até quando o corpo a frente se contorce.
Sempre calmo.
Bate e oferece a mão para o adversário.
- Levanta que foi de leve. Nem cheguei duro.
E o máximo do cinismo:
- Escorreguei professor. O campo está molhado.
O amigo leitor, se for amante do futebol, já deve ter presenciado conversas entre volantes e zagueiros. São monossilábicos, falam por códigos. Geralmente, precisos na ação:
-"Mata".
-"Dobra comigo e racha".
- "Morreu ele. Morreu."
- "Chega comendo, sem perdão".
-"Se der dois toques na bola é vala".
E assim se estende esse diálogo setorial.
E quando cola, chega e pergunta:
- Mudou o perfume?
Espantado, o pobre diabo levanta o braço e de migué sai de campo.




domingo, 4 de junho de 2017

Chuteiras velhas



Chuteiras velhas são incríveis. Trazem no corpo histórias de batalhas Homéricas, lances que somente a memória dos presentes podem desmentir. Chuteiras velhas tem sangue. São anatomicamente deformadas.
Usadas.
As chuteiras velhas conhecem os atalhos do campo.
Chuteiras velhas são velhas.
Cada risco no couro.
O bico reforçado com a costura.
Os buracos abertos em suas laterais.
Tudo. Tudo conta histórias.
No plural, não no singular.
Histórias que se superam em detalhes. Detalhes que sequer são lembrados pelas marcas no corpo.
Chuteiras velhas são como seus donos. Solitários contadores de histórias que envelhecem em suas paixões.
Se o campo diz sobre seus atores, o que dirá os apetrechos que os compõem?
É o branco da trave em uma das laterais.
É a grama que teimosamente está presa ao bico.
O calcanhar torto pela pisada.
A lama nas travas.
Tudo narra.
Mas narrar é ver o tempo passar. Melhor, narramos no tempo.
Chuteiras velhas são como fotografias desbotadas, falam sobre borrões. Ilustres e desconhecidos. Apenas borrões.
São estranhas aos que as desconhecem, mas estão lá.
Tortas e a postos, para se inundarem de vida em mais uma gigantesca disputa de várzea.
Mais uma disputa.
Mais uma história.
O tempo sempre há de vencer as chuteiras velhas. Que do tempo, só podem narrar.