sábado, 18 de janeiro de 2020

O gato


Mesários são criaturas indiferentes à partida. São verdadeiros delegados, estão lá para que as regras do campeonatos sejam cumpridas e pronto. Assistem tudo de um ponto privilegiado do campo.
Chegam cedo, antes mesmo da arbitragem.
Gostam do relógio.O conferem o tempo todo. E quando essa aponta que está na hora de começar o seu trabalho, são pontuais. Montam suas mesas e, como que mecanicamente iniciam o ritual da documentação.
Geralmente, um membro da equipe leva os documentos e as carteirinhas com foto para o figura, já com a ficha da partida assinada. Mas em campeonato de juvenil não. Tem que fazer fila. dizem que é para ensinar a boa disciplina para os atletas.
E foi numa destas filas que um bicho estranho apareceu para um desses senhores.
Campeonato Carioca juvenil de 1998, jogo entre América e Friburguense. A partida ocorreria no Estádio Giulite Coutinho, casa do América.
Molecada entre quinze e dezessete anos. Ansiosos. A ponto de alguns subirem para a documentação ainda descalços.
Havia montado sua mesa debaixo de um guarda-sol, cordialmente cedido pela equipe mandante. situara-a entre os bancos de reservas. 
Observara tudo. Até mesmo os pontos de arremesso de urina e cuspe.
O guarda-sol era tão fino, que poderíamos chamá-lo de corta-cuspe.
Estava bem protegido. Ao menos das intenções dos poucos torcedores.
Organizou a fila e sentou-se.
Colocou seus óculos, abriu sua pasta e retirou a ficha de inscrição da partida. 
Como de costume, recebia os documentos e carteirinhas sem sequer olhar o atleta. Conferia-os e chamava o próximo da fila.
A cena se repetia já haviam passado quase vinte jogadores por sua mesa.
Olhava a foto.
A assinatura.
Conferia os documentos.
Olhava a ficha.
- Próximo...
Detestava fotocópias, chamava de fraude. Sempre quando uma aparecia, criava caso. Mas desta vez tudo corria tranquilamente. As equipes já sabiam de sua presença no campo.
Continuou seu trabalho de conferência.
Dos garotos lembrava apenas das vozes.
Sons agudos, com alguma tentativa de empostação, geralmente sempre terminando em fracasso.
Quando que por piedade, ou tédio, dava por olhar a fila por sobre seus óculos. Via um interminável alinhamento de moleques franzinos, pálidos e com seus documentas nas mãos.
Só que dessa vez, nem isso. Ignorou-os por completo.
Eram duas da tarde. O sol não estava para brincadeira.
Continuou a olhar os papeis, e fixou-se nisso.
De repente, entre um documento e outro. Um trago de água e um confronto de assinaturas. O sol que o castigava, some de sua mesa. em seu lugar, uma sombra que parecia não ter fim.
Ergueu vagarosamente os olhos por sobre o o óculos, como de costume, e o que via era apenas uma massa negra e volumosa. Assustado, continuou a observa-lo por alguns segundos.
A figura era assustadora. Uma montanha negra. Massuda e de olhar severo que lhe abriu um sorriso amistoso com dentes brancos e enormes que encavalavam em sua boca. Percebia os pelos que lhe tomavam a face. Os olhos fundos e a voz assustadoramente grave que em nada lembrava o conjunto de garotos que passaram por ali. Perfilado com garotos da categoria, destoava, avolumava-se sobre o grupo. Sua sombra parecia engolir ao menos três jovens atletas.
Estendeu-lhe a mão com os documentos. E sorriu.
Incrédulo com o que via, secamente lhe perguntou: - Idade?
- Dezesseis professor. Igual o que está no documento.
Devolveu-lhe os documentos e continuou sua conferência.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

O centroavante do amor e sua Julieta

Fotografia  de André Camargo Lopes, 2018.

- Vai morrer rapaz. Você ouviu? Se fizer isso de novo, daqui você não sai vivo.

Os casais se unem pelos mais estranhos motivos. E são essas estranhezas o que movimentam suas paixões. Alguns casais se tornam fortes justamente por amar-se e amarem a mesma coisa juntos. 
Quando avistávamos o Fiat Spazio creme, ano 1983 nas imediações do campo, tínhamos a certeza de que o jogo seria tenso. Teríamos um espetáculo de paixões no nível Shakespeariano.  Daquelas de amor intenso. De dois contra o mundo, coisas assim.
O dono do veículo era Jairzão, centroavante que acabara de chegar no Heimtal para a temporada 2000, trazendo a fama de matador, vindo do A. C. Paraíso. Era um indivíduo alto e forte, bom sujeito. Jogador tipo família. Não se envolvia em brigas. Sequer em bate-bocas. ao contrário de muitos, ia para o campo com a esposa, irmãos e filho. Levavam toalha para piquenique, bebida, lanche, protetor solar, e outros apetrechos preparados na véspera por sua esposa e cunhadas. 
Chegavam cedo, a tempo de assistirem a partida de aspirantes. Acampavam à sombra de uma árvore, e lá ficavam. Um verdadeiro passeio dominical.
Visualmente era um casal exótico, ele com seus quase dois metros de altura, e ela com pouco mais de um metro e meio. E não parava nisso.
Acostumados com gols marcados, comemorados com palavrões, socos no ar, e toda forma de expressão vil, que ebuliam no êxtase de uma partida de futebol. Passamos a ter um novo tipo de comemoração.
Pois com Jairzão era diferente. Era o atacante do amor.
Antes mesmo de surgir um Wagner Love, a várzea londrinense teve o seu atacante Love.
Independente do campo que jogávamos.
Era ele por a bola na rede e a cena se repetia.
A montanha de músculos se deslocava para uma das laterais do campo. Procurava atento sua esposa, não ousávamos interrompe-lo, aguardávamos no campo, limitando-nos a observar a cena.
Eram longos segundos de busca incessante.
Volta e meia, ela surgiu gritando juras de amor e saltitando de alegria. As vezes, de tão empolgada pulava com o filho nos braços. E a criança, assustada, chorava.
Eram beijos rápidos no alambrado.
Beijos suados.
Nela e no filho. Tapinhas nos irmãos.
Tudo em família.
Era um bom sujeito.
Eram declarações das mais apaixonadas.  Bastava sair o gol, e tudo se repetia.
Juiz olhando o relógio.
Adversário mal-amado cobrando cartão.
Saltos no alambrado.
E o beijo. Ah! O beijo dos apaixonados.
O tempo parava, o mundo que espere, parecia ser isso a mensagem que nos mandava.
E esperávamos.
Mas vida de centroavante, não é esse mar de rosas. Tem seus prós e contras. Em dia que a bola não entrava e a torcida da casa dava de lhe pegar no pé deixando-o cabisbaixo.
Não demorava muito e lá do campo a escutávamos brigando com os torcedores mais exaltados.

- Se acha que é fácil, vai lá e faz você.
- Cadê o respeito? Semana passada não era isso que você pensava dele. Quero ver o que vai fazer se ele fizer um gol.

Dito e feito. Aquilo parecia lhe dar ânimo. Alguém que o defendesse.
Como uma criança se sentindo segura, em segundos transfigurava, ia de cabisbaixo a sorridente.
Olhava para a torcida e ria.
Jairzão ao ver  cena ria, apenas ria.
Ria do trabalho de seus irmãos em acalmar sua fiel torcedora.
Ria como que se sentindo vingado das afrontas.
E continuava a rir, até que em uma de suas persistências encontrasse o gol.
E como resposta aos descreditados, corria até sua defensora para lhe render as homenagens devidas.
Era o casal perfeito. O matrimônio parecia ter sido lavrado em um campo de futebol. Sinceramente, nunca lhe perguntei isso. Mas suspeitava que sim.
Era um amor que se misturava como a fidelidade de um torcedor.
Ela cobrava de tudo e de todos.
Quando o jogo era pegada, gritava para nossa defesa

- E ai, ficarão de conversa ou vão a descer a lenha como se deve? Estão batendo no meu marido, ainda não perceberam?

As cobranças conosco só paravam quando efetivamente começávamos a "impor o respeito".
Agora com os adversários, isso parecia não ter fim.
A cada cotovelada. Puxão de camisa. Subia o alambrado como um a fera. Vermelha, tomada em cólera e gritava com uma fúria incontrolável.

- Se bater de novo em meu marido você não volta para casa ouviu?

Não eram somente essas ameaças, mas... Estava convicta de suas palavras. As vezes parecia querer arremessar algo no atleta adversário. Sempre contida por um dos heroicos cunhados que acenava para o irmão e a possível vítima.
Andava de um lado para o outro. Raramente sentava.
Mas, tudo mudava quando ouvia o barulho da rede.
Tudo mudava quando percebia que em meio aquele monte de marmanjos, uma figura familiar, rasgava o campo em sua direção. Com os braços abertos e o olhar apaixonado a procurando.
Transfigurava. Ficava amável outra vez.
Derretia-se em meio as declarações apaixonadas sob o olhar dos demais.
Naquele momento tudo se acalmava.


domingo, 12 de janeiro de 2020

Menino abusado

Jogo da copa Cambélon 2017, campo do Maria Lúcia.
Fotografia: André Camargo Lopes

- Vou começar jogando?
Não entendemos a pergunta e continuamos o aquecimento.
Mas o indivíduo era persistente, e tornou a perguntar.
- Vou começar Jogando?
Era uma pegunta estranha para início de temporada.
Acabara de entrar no elenco.
Inserido no grupo de Whatsapp do time, brincou, resenhou e até deu palpite. Parecia que realmente estava acreditando naquilo que ali ocorria. Levou a sério. Tem jogador que acredita em resenha de Whatsapp.
Falaram que está voando, e acreditou. E pior, foi para ousadia, queria derrubar o titular de carreira atropelando a fila dos reservas. Não entendia o jogo da resenha. No grupo, fala-se o que quer. Lava-se roupa suja, provoca o companheiro para ver o que aguenta.
Mas ele não.
Acreditou e foi para cima da diretoria.
Queria saber se iniciaria a temporada como titular.
Em seu segundo jogo.
Os donos da posição ficaram ofendidos.
E digo, titular ofendido não sai de campo.
Fica.
Nem que for por pirraça. Mancando, saltitando.
Mas fica. E a cada tapa, dá uma olhadinha para o lado, só para provocar.
Mas, o indivíduo não tinha limites, era ousado.
Com ele não tinha conversa.
Já estava no campo.
Colocou o uniforme o correu para o aquecimento.
Bateu bola com o pessoal, já se considerava o titular da posição.
Aqueceu.
Chutou a gol. Alongou. Deu saltinho e arrancou. Estava pronto para a partida.
Se posicionou na sua e lá ficou. Esperando a organização final da equipe.
Quando viu que estava sobrando. Começou a suar. Olhava para um lado e para o outro, inadvertidamente. Ansioso, não aguentou.
Perguntou outra vez: "E ai, vou para o jogo ou espero?"
É como se não estivesse satisfeito com a ausência da resposta.
Não precisava nem falar.
Os titulares já estavam em campo.
Apenas olhamos.
E sem resposta sentou.
Sentou e não gostou.
Fez até gol.
Mas a várzea não é o Cartola.
Jogou.
Não convenceu, e sentou.