segunda-feira, 23 de março de 2020

Vou furar a bola


- Mas é um direito nosso. Isso aqui não é Cuba não. "Nóis vive" numa democracia entendeu?
Uma D-E-M-O-C-R-A-C-I-A.
O sujeito estava ensandecido. Enquanto gritava, andava em círculos, gesticulava, e volta e meia se direcionava a autoridade ali presente.
Debateu com todos. Do árbitro ao policial que lhe abordava.
Não acreditava no que estava acontecendo. Parecia se questionar. 
Repetia consigo mesmo:
- Justo no Brasil, um país democrático. E os direitos do cidadão? Ah! Isso eu não aceito.
Ruminou diversas vezes a mesma frase. Caminhava como um louco.
Estava visivelmente ofendido.
Combinara tudo pelo Whatsapp.
Indignado, com o aparelho celular em mãos, questionava os policiais se eles sabiam da dificuldade de se articular as coisas pelo grupo da boleiragem.
Mas tudo. Tudo, naquele momento, lhe parecia contrário.
Não havia argumento. Não iria acontecer e ponto.
Insultado, voltou-se para o policial mais próximo, e em tom ameaçador lhe disse:
- Isso é abuso de autoridade. A imprensa vai saber disso.
Os policiais que ainda o abordavam de forma cordial. Estranharam. Tentaram-no acalmar.
Mostravam-se até solidários. E entre um chilique e outro, continuavam com sua árdua tarefa de conscientização. Eram quase didáticos. Falavam em tom sereno, explicando ponto a ponto o porque da proibição. A necessidade do fechamento do campo.
E quanto mais explicavam, mais o infeliz crescia.
Quanto mais próximos do acordo.
Mais agitado ficava.
Batia-lhe o desespero.
Chegou a gravar um vídeo denunciando os policiais. Dizia que o abuso não ficaria em silêncio.
E os policiais? Ao perceberem a gravação, ironicamente acenaram. 
Isso foi a gota d'água. 
Jogou o celular no chão.  E furiosamente gesticulava. Gritava. Chamava o público para intervir. Buscou o tumulto na argumentação do cara a cara.
E nada.
Então, tomou a bola.
Isso mesmo.
Desesperado, puxou a bola que estava com o policial e saiu correndo.
Mas tudo tem o seu limite.
Isso foi demais.
Desrespeitou a autoridade. 
Era muito desaforo.
Acabou a conversa.
Em questão de segundos, tudo mudou. O policial esbaforia sua autoridade contra todos.
Cresceu, e com a mão no coldre dizia:
- Traz aqui.
O peladeiro atrevido, como que de afronte, questionava:
- Trazer o que?
Sacou a arma e como último recurso avisou:
- Vou furar a bola.
Ouviu?
Vou furar a bola.
No tiro.
Vou furar a bola.
E vai ser no tiro. Acabou a conversa.
Aqui, ninguém joga. E se teimar, levo comigo os uniformes. E uns dois para averiguação, só para passar o desaforo.
Não deu outra.
Um multidão assustada se deslocou até o outro lado do campo, onde o boleiro rebelde se encontrava. Estavam dispostos a por fim ao sequestro. Usaram os mais diversos argumentos. dos Legais aos emocionais.
- Devolve rapaz. Domingo que vem a gente dá um jeito.
- Rapaz, essa bola é de duzentão.
- Você vai tomar cana. Entrega.
- Pensa no seu filho. Pai preso, é complicado.
Contrariado, mas convencido. O boleiro revoltado que havia dado fuga com a bola voltou. Devolveu-a, não para o policial. Para não dar o braço a torcer, não era arregão. Entregou-a  um amigo.
O futebol acabou mais cedo.
Sem gols.
E sem bola. Essa foi de viatura para o  seguro do distrito policial.
No campo, ficaram os uniformes, e os marmanjos que aprenderam na marra o sentido da palavra quarentena.