sexta-feira, 22 de junho de 2018

Patriotismo sazonal

fonte da imagem: http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/fotos/2014/06/leitores-enviam-fotos-de-ruas-enfeitadas-para-copa.html


Quarta-feira em dia de jogo de seleção. As ruas estavam vazias. Ou praticamente vazias. Transitavam pelas vias alguns poucos desinformados, e outros, esses que deliberadamente, como réprobos da pátria, ignoravam os heróis nacionais que em questão de poucas horas entrariam em campo.
O que se multiplicava pelas esquinas eram vendedores de camisetas, bandeiras e todo o tipo de souvenir patriótico. Senti-me um traidor. Mas continuei minha marcha.
As fachadas estavam decoradas. Sinceramente, não muitas. Reflexo da péssima estreia contra a Suíça.
 Em um colégio ouvia-se o aquece de alunos na organização do grito de possíveis gols canarinhos. Resisti a tudo. E rumei para o trabalho. Ao estacionar, uma senhora questionou-me sobre sua bandeira:
- Nossa bandeira está visível.
Disse-lhe que sim.
Continuou:
- Mas está bonita? O que acha?
Ri, e disse-lhe que estava bonita. Bonita e visível.
Perguntava-me como se quisesse confirmar seu voto patriótico.
Fez-me lembrar de minha infância. De minha primeira Copa.
Na escola, pintávamos bandeirinhas em cópias mimeografadas ainda cheirando a álcool.  Não eram copias qualquer. Havia dizeres. Dizeres de apoio. Frases otimistas que segundo nossas mentoras, levariam energia positiva aos nossos craques, que em seu heroísmo homérico confrontariam em campos estrangeiros, inimigos vis.
Lembro-me das bandeiras pintadas com guache nos muros da escola. Dos jogos de figurinhas nos intervalos. Os gizes coloridos redecoravam o piso do pátio. Discutíamos avidamente os craques das rodadas. As jogadas. Sempre observados por olhares curiosos. Pareciam aprender sobre a magia da bola, através da conversa de meninos. Meninos. Copa era assunto sério.
Era tamanha a euforia, que as zeladoras sempre carrancudas com nossos deslizes, sequer manifestavam. Ao contrário, assistiam às partidas no pátio, aplaudiam-nos. Até torciam.  Arriscavam em comentários futebolísticos. Algumas, sensibilizadas pelo momento, trazia-nos figurinhas.
Em época de Copa, éramos comandados por senhoras. O hino nacional era executado diariamente. E, em jogos da seleção, cantado a pulmões cheios. Cheios de ar e esperança. Sentia-me perfilado ao lado de Sócrates, Zico, Edinho e companhia. Como se tivesse a bola abaixo dos pés.
Era um patriotismo ingênuo. De saias. Cantado e pintado. De professoras, em sua maioria, senhoras, que nos educavam em um civismo maternal.
Era um patriotismo cíclico.  Que como tal, terminara com as cobranças de pênaltis. Encerrado na parede francesa.
Adeus às bandeiras.
As fachadas voltaram a sua frieza.
E nós, voltávamos à rotina, na expectativa de que dali há quatro anos tudo fosse diferente.
E veio 1990.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Trabalho feito

fonte da imagem: http://novaspensatas.blogspot.com/

Deu ruim?
É trabalho feito.
Se o time está em crise, algo de errado está acontecendo em planos sobrenaturais.
Recentemente saíram com a história do uniforme macumbado.Isso mesmo, zicado, já veio com mandinga.
Boleiro é muito supersticioso. Basta dar-lhe motivo, e as histórias fluem.
A única certeza era que a zica alojou. Parecia ter incrustado no tecido. E de lá não saia.
Após a hipótese, surgiram as mais diversas justificativas para derrotas inexplicáveis.
Só não apontaram o óbvio.
Isso era evidente. A quem interessa explicar que o time não anda bem?
Melhor que a culpa seja do Diabo, ou de seus associados.
Caíram na besteira de fazerem tal apontamento.
Já apareceu no grupo aquele que dizia ser obra do Coisa Ruim.
Em meio as discussões acaloradas, teve membro da diretoria falando em queimar o pobre.
Mas não sem antes dar-lhe um banho de sal para purificar.
Indicaram pastores, rezadeiras e todo sujeito encantado capaz de tirar encosto.
Mas faltou consenso.
O whatsapp ferveu.
De um lado os descompromissados, brincalhões que não entendem a dimensão da crise instaurada no grupo. Afinal, tratava-se de um jejum de mais de dez partidas.
Do outro lado, a diretoria e os atletas compenetrados em romper com o olho ruim.
A bagunça estava formada.
Era jogador desesperado em meio a engraçadinhos que só queriam aprontar.
Um reclamava de cá, e postava até oração.
Outros, enchiam a tela de emojis e volta e meia um vídeo de sacanagem.
Em meio a tudo isso aparecia um mais informado avisando do jogo da Seleção.
Em reuniões assim tem a turma da visualização.
Esses, só observavam preferiram se abster.
Tudo parecia certo.
O Trabalho iria acontecer.
O pobre uniforme pagaria sozinho as caneladas na bola.
Sofreria o flagelo dos mártires.
Deu ruim.
Queima.
Reunião encerrada.
Até a próxima postagem.

"Jogo confirmado. Confirma ai quem vai"
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Um ou dois confirmaram.
E a culpa é do uniforme.




domingo, 3 de junho de 2018

Doutorzinho



Depois da água, somente o doutorzinho.
É infalível.
Indicado por especialistas para qualquer problema de origem futebolística.
Chegou na farmácia, é coisa certa.
Até parece que esses estabelecimentos tem um especialista em problemas da boleiragem.
Boleiro que se preza tem o seu doutorzinho na bolsa.
A qualidade deste produto é medida no cheiro. Quanto mais forte o odor da cânfora, maior as suas propriedades medicinais.
O que não falta em vestiários são histórias, e o cheiro de cânfora.
Para ser específico, histórias de lesões. É ombro fraturado, tornozelo torcido, estiramento, tendinite, e todas as mazelas que um corpo pode sofrer.
O velho Tulipa, que o diga. Centroavante dos bons, do tipo matador. Trombava com tudo quanto é tipo de zagueiro. Principalmente os que não rezavam para dormir. Desses parecia gostar mais.
Era uma verdadeira Enciclopédia Clínica Futebolística.
Franzino e de tipo cavernoso.
Caminhava com suas pernas compridas e secas, com as meias arreadas, como se quisesse provocar os marcadores. Tinha o rosto coberto de salientes "crateras", uma barba totalmente falha que se desenhava por esses relevos, e as marcas dos pontos.
Havia domingos que aparecia com um dos olhos roxos ou inchados.
- O que aconteceu rapaz?
Com o cigarro ainda na boca respondia com sua voz sempre serena, parecendo minimizar o feito.
- Isso aqui? Foi nada não. Foi no jogo de quarta e um caminhão sem freio que veio pra cima de mim. Mas nós classificamos.
Era só isso que importava.
A classificação.
Era um boleiro de espírito.
Tinha uma tolerância a dor invejável.
Em todo campo que íamos, apanhava. E como apanhava.
Centroavante habilidoso apanha muito.
E são esses tipos que traziam a resenha para dentro de vestiário.
Moleque novo. Ou ficava admirado ou tremia.
Comecei no futebol vendo-o se lavar de doutorzinho nas tardes de domingo.
Quando perguntava para que servia aquilo, dizia que era para se prevenir das pancadas.
Sempre acreditei que era um tipo de anestésico.
Teve época de levar garrafadas para beira do campo.
Era um Xamã artilheiro.
Com ele aprendi que quanto mais velho o boleiro, maior o número de lesões e principalmente, das histórias das lesões que tem para contar.  Em suas mochilas, encontra-se de tudo, ataduras, pomadas, adesivos e até telefone de pai de santo.
É tanta história que assusta.
Tem jogador que impressionado, aplica o santo remédio antes mesmo de entrar em campo. Até aqueles que não tem problema algum. Esses, aplicam para se prevenir.
Recentemente descobri que se cheira a pomada. Isso mesmo. Antes de entrar em campo, deve-se cheirar um pouco. Para "abrir os pulmões".
Não emprestamos chuteiras.
Mas caiu no chão e gritou.
Alguém já pergunta:
- Tem doutorzinho ai?


Cativa no campo da Santa Cruz



Jogo em domingo de apagão, União Santa Cruz 1 x 4 Saul Elkind, em 27 de maio de 2018.