segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

O centroavante do amor e sua Julieta

Fotografia  de André Camargo Lopes, 2018.

- Vai morrer rapaz. Você ouviu? Se fizer isso de novo, daqui você não sai vivo.

Os casais se unem pelos mais estranhos motivos. E são essas estranhezas o que movimentam suas paixões. Alguns casais se tornam fortes justamente por amar-se e amarem a mesma coisa juntos. 
Quando avistávamos o Fiat Spazio creme, ano 1983 nas imediações do campo, tínhamos a certeza de que o jogo seria tenso. Teríamos um espetáculo de paixões no nível Shakespeariano.  Daquelas de amor intenso. De dois contra o mundo, coisas assim.
O dono do veículo era Jairzão, centroavante que acabara de chegar no Heimtal para a temporada 2000, trazendo a fama de matador, vindo do A. C. Paraíso. Era um indivíduo alto e forte, bom sujeito. Jogador tipo família. Não se envolvia em brigas. Sequer em bate-bocas. ao contrário de muitos, ia para o campo com a esposa, irmãos e filho. Levavam toalha para piquenique, bebida, lanche, protetor solar, e outros apetrechos preparados na véspera por sua esposa e cunhadas. 
Chegavam cedo, a tempo de assistirem a partida de aspirantes. Acampavam à sombra de uma árvore, e lá ficavam. Um verdadeiro passeio dominical.
Visualmente era um casal exótico, ele com seus quase dois metros de altura, e ela com pouco mais de um metro e meio. E não parava nisso.
Acostumados com gols marcados, comemorados com palavrões, socos no ar, e toda forma de expressão vil, que ebuliam no êxtase de uma partida de futebol. Passamos a ter um novo tipo de comemoração.
Pois com Jairzão era diferente. Era o atacante do amor.
Antes mesmo de surgir um Wagner Love, a várzea londrinense teve o seu atacante Love.
Independente do campo que jogávamos.
Era ele por a bola na rede e a cena se repetia.
A montanha de músculos se deslocava para uma das laterais do campo. Procurava atento sua esposa, não ousávamos interrompe-lo, aguardávamos no campo, limitando-nos a observar a cena.
Eram longos segundos de busca incessante.
Volta e meia, ela surgiu gritando juras de amor e saltitando de alegria. As vezes, de tão empolgada pulava com o filho nos braços. E a criança, assustada, chorava.
Eram beijos rápidos no alambrado.
Beijos suados.
Nela e no filho. Tapinhas nos irmãos.
Tudo em família.
Era um bom sujeito.
Eram declarações das mais apaixonadas.  Bastava sair o gol, e tudo se repetia.
Juiz olhando o relógio.
Adversário mal-amado cobrando cartão.
Saltos no alambrado.
E o beijo. Ah! O beijo dos apaixonados.
O tempo parava, o mundo que espere, parecia ser isso a mensagem que nos mandava.
E esperávamos.
Mas vida de centroavante, não é esse mar de rosas. Tem seus prós e contras. Em dia que a bola não entrava e a torcida da casa dava de lhe pegar no pé deixando-o cabisbaixo.
Não demorava muito e lá do campo a escutávamos brigando com os torcedores mais exaltados.

- Se acha que é fácil, vai lá e faz você.
- Cadê o respeito? Semana passada não era isso que você pensava dele. Quero ver o que vai fazer se ele fizer um gol.

Dito e feito. Aquilo parecia lhe dar ânimo. Alguém que o defendesse.
Como uma criança se sentindo segura, em segundos transfigurava, ia de cabisbaixo a sorridente.
Olhava para a torcida e ria.
Jairzão ao ver  cena ria, apenas ria.
Ria do trabalho de seus irmãos em acalmar sua fiel torcedora.
Ria como que se sentindo vingado das afrontas.
E continuava a rir, até que em uma de suas persistências encontrasse o gol.
E como resposta aos descreditados, corria até sua defensora para lhe render as homenagens devidas.
Era o casal perfeito. O matrimônio parecia ter sido lavrado em um campo de futebol. Sinceramente, nunca lhe perguntei isso. Mas suspeitava que sim.
Era um amor que se misturava como a fidelidade de um torcedor.
Ela cobrava de tudo e de todos.
Quando o jogo era pegada, gritava para nossa defesa

- E ai, ficarão de conversa ou vão a descer a lenha como se deve? Estão batendo no meu marido, ainda não perceberam?

As cobranças conosco só paravam quando efetivamente começávamos a "impor o respeito".
Agora com os adversários, isso parecia não ter fim.
A cada cotovelada. Puxão de camisa. Subia o alambrado como um a fera. Vermelha, tomada em cólera e gritava com uma fúria incontrolável.

- Se bater de novo em meu marido você não volta para casa ouviu?

Não eram somente essas ameaças, mas... Estava convicta de suas palavras. As vezes parecia querer arremessar algo no atleta adversário. Sempre contida por um dos heroicos cunhados que acenava para o irmão e a possível vítima.
Andava de um lado para o outro. Raramente sentava.
Mas, tudo mudava quando ouvia o barulho da rede.
Tudo mudava quando percebia que em meio aquele monte de marmanjos, uma figura familiar, rasgava o campo em sua direção. Com os braços abertos e o olhar apaixonado a procurando.
Transfigurava. Ficava amável outra vez.
Derretia-se em meio as declarações apaixonadas sob o olhar dos demais.
Naquele momento tudo se acalmava.


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